Quando astros da música morrem, alguém sempre diz: "este não incomoda mais". E a frase não sai da boca apenas de quem não suportava os músicos recém-falecidos. Ela é proferida também, em coro, por aproveitadores que, ainda no velório, já estão tramando como lucrarão às custas do óbito daquele ídolo pop. "Merda vende, morte vende mais", resumia muito bem o trio Kleiderman (dos Titãs Branco Mello e Sérgio Britto) na canção "Get me Higher". É uma das leis do business sônico, não tem jeito, basta notar a rapidez com que se preparou "This is It", tal do filme com os ensaios da que seria a última turnê de Michael Jackson.
E, aproveitando que se aproxima o Dia de Finados (2 de novembro), o Mala da Lista exuma a cova de uma das espécies mais oportunistas de rentabilidade sobre cantores e bandas: os duetos ou outras colaborações póstumas. Criada graças à evolução das tecnologias de gravação nos anos 1990, esta foi a primeira modalidade de mash-up antes mesmo que o termo fosse inventado.
Já por princípio trata-se de um procedimento bastante discutível, por partir da decisão unilateral de alguém - um produtor, uma gravadora ou um músico mesmo - sem que o morto "homenageado" seja consultado. Haha, você dirá que é claro que isso não seria possível. Mas então por que, por via das dúvidas, não deixar tudo como está, para não correr o risco de ver um velho herói revirando no caixão? E ainda por cima, muitas destas "parcerias" não acrescentam em nada musicalmente e perdem para as versões originais, quando elas existem.
Sim, eu sei também que alguns destes encontros pós-mortem foram bem intencionados e resultaram em algo interessante. Mas, como na maioria dos casos predominaram a ganância e a picaretagem, este Top 10 começará pelos reencontros "místicos" que soaram melhor, passará pelos que apenas escapam e chegará aos piores e mais oportunistas. Não valem remixes, como o de Junkie XL para "Little Less Conversation", de Elvis Presley. E se os finados em questão não concordarem, que caia um raio sobre minha cabeça agora.
10- John Lennon + Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr -"Free as a Bird" (1995)
Praticamente tudo que envolve os Beatles opera a pelo menos um degrau acima do resto das bandas. Inclusive em se tratando da malfadada prática das gravações póstumas. A diferença em "Free as a Bird" é que sua proposta era a mais ambiciosa desta lista: os três então remanescentes do quarteto terminariam uma canção iniciada por Lennon, cuja fita demo caseira Yoko liberou de seus arquivos. Em seguida, mantendo os vocais originais do falecido beatle na parte 1 (a única que até então existia), a arranjariam e a gravariam.
Deu no que deu. Ou seja, uma canção à altura das melhores do grupo e também um dos raros exemplos de composição dos Fab 4 em que se observa nitidamente a junção de passagens criadas por John e Paul, como ocorrera em "We Can Work ot Put" ou "A Day in the Life". Desde logo que a ausência de Lennon ajudou o trabalho de seu desafeto fluir. E os genes melódicos de McCartney não decepcionaram nos trechos "What ever happened to?/ Life that we once knew". No segundo deles, aliás, o vocal de George Harrison leva às lágrimas o mais cético dos ouvintes de experiências discográficas póstumas. Incluindo este Mala aqui.
Sim, Marvin Gaye tem uma filha que canta, este mulherão chamado Nona, que acabou virando atriz. Uma manobra inteligente, já que seu talento para música ficaria sempre à sombra e a anos-luz de distância do impacto do pai. Nesta solenidade esportiva de 2004, ela é o primeiro plano de mais um espetáculo "pai e filha unidos pela tecnologia" (ver item 2). Mas, ainda que Nona seja areia demais para qualquer de nossos caminhõezinhos, o que não dá mesmo é para tirar os olhos de Marvin no telão. Em outro megaevento do gênero, de 1983, ele rearranja o hino nacional americano de forma que a canção pareça de sua autoria, com direito a electro-batidinhas malandras no estilo de seu disco "Midnight Love", lançado no ano anterior.
8- Ray Charles + Count Basie Orchestra - "Ray Sings Basie Swings" (2006)
É caça-níqueis, mas um caça-níqueis de alta classe. Aproveitando que a morte de Ray Charles ainda era um assunto quente - ele fora desta para uma melhor em 2004 e no mesmo ano saíra o filme "Ray" -, um executivo da Concord Records não hesitou ao encontrar fita com gravações de um show do soulman de 1973. No registro, mal se escutava a parte instrumental, mas a voz de Charles se sobressaía intacta. E como na mesma noite a Count Basie Orchestra havia tocado, o mesmo produtor resolveu juntar lé com cré na forma de um disco. Convocou a big band, então há mais de vinte anos órfã de seu líder, para reinterpretar os arranjos daquela noite de 33 anos antes. Músicos de primeiríssimo gabarito, um dos maiores intérpretes de todos os tempos, um repertório de clássicos. Maquiavélico.
Uns diriam que foi uma oportunidade de registrar em disco um velho sucesso de Cazuza que ele não gravara originalmente com sua ex-banda. Outros, que é mais uma picaretagem nostálgica travestida de especial da MTV. Eu acho que é meio a meio, e não porque fico em cima do muro, mas porque os dois lados são claros para mim. Mas tudo bem, vai, passa. E mesmo que venha de um CD player, a voz de Cazuza encontrando com a de Frejat soa mais inspiradora do que, por exemplo, o dueto que ele faz com a Simone da mesma canção. Porque Simone, ao contrário do que pensam os gringos, não dá.
6-Bob Marley + Lauryn Hill - "Turn Your Lights Down Low" (1999)
A hoje reclusa Lauryn Hill era a bola da vez há dez anos, quando desfrutava do merecido sucesso por seu disco "The Miseducation of Lauryn Hill", de 1998. E também era a garota dos olhos de Rohan Marley, um dos filhos de Bob. Uma coisa levou a outra e, quando ela menos esperava, já estava gravando um dueto póstumo com o finado sogro. O resultado é uma canção pop razoável, muito mais para o hip-hop temperado com R&B de Hill do que para o reggae de Marley. A picaretagem fica a cargo do uso da voz do ícone jamaicano, que acabou sendo praticamente um sample, e não uma "participação" propriamente dita.
Dois anos após o lançamento de "Abbey Road" (1969), Elis Regina gravou uma versão deste trecho do grande medley que encerra o disco e que acabaria servindo de mensagem de despedida dos Beatles. O registro ficaria guardado numa gaveta de estúdio até que, só neste ano, fosse resgatado pelo produtor Marcelo Fróes para a coletânea "Beatles 69", com artistas brasileiros homenageando a transcendental bolacha. E, mais do que desenterrá-la, ocorreu a Fróes chamar Milton Nascimento para um back to back artificial com Elis.
Estávamos diante, portanto, de duas minicanções de Paul McCartney presentes em um dos melhores trabalhos da melhor banda de todos os tempos, interpretadas pela maior cantora brasileira e prestes a ganhar complemento vocal de outro gigante, além de ex-parceiro e beatlemaníaco convicto. Tudo pronto para a geração de um legítimo clássico que só a máquina do tempo conhecida como Pro-Tools pode proporcionar, correto?
Bem... mais ou menos. Percebe-se, logo de cara, o porquê da primeira versão de Elis nunca ter dado as caras. Ficou muito aquém do que se espera dela. E a voz de Milton, meio que perseguindo a da amiga ao invés de criar alguma harmonia notável (e entregando-se, assim, como póstuma), perde-se sobre o novo arranjo. Que, diga-se de passagem, é caidaço. Apesar de toda a emoção relatada pelos presentes no estúdio, este "Golden Slumbers/Carry that Weight" não convence nem o mais ingênuo fã de Beatles ou os mais radicais admiradores de Elis e Milton.
4-Lisa 'Lef Eye Lopes' + TLC e Missy Elliott - "Let's Just Do It" (2009)
As colaborações no hip-hop viraram um negócio tão mercenário que para Missy Elliott, por exemplo, daria na mesma se ela estivesse botando suas rimas no disco de uma pessoa viva. E "Let's Just Do It" é apenas uma das faixas de "Eye Legacy", o recém-editado álbum póstumo de Lisa "Left Eye" Lopes, integrante do grupo de R&B TLC morta em um acidente de carro em 2002.
3-Renato Russo + RPM - "A Cruz e a Espada" (2002)
Para ajudar na promoção de seu revival pela MTV, o RPM forçou a barra buscando a voz de Renato Russo cantando "A Cruz e a Espada", hit da banda lançado nos anos 1980. Como que dizendo, "estão vendo? O cara gravou a nossa música antes de morrer!". Para completar, o trecho foi extraído de "Rock Popular Brasileiro", disco de versões de Paulo Ricardo lançado em 1996. Ou seja, era ele fazendo cover da própria banda.
Esta não poderia ficar de fora de jeito nenhum. Afinal, foi a gravação pioneira das parcerias somente possíveis com a ajuda da máquina. Ou no mínimo a precursora nas possibilidades de execução simultânea, ao vivo, de uma voz real e outra do além. E também a mais bem-sucedida - o disco "Unforgettable: With Love" vendeu milhões de cópias e abocanhou Grammys. Ao menos o arranjo original foi preservado. Depois desta, nenhum músico morto jamais descansou totalmente em paz.
1-Tupac Shakur + Notorious B.I.G. - Runnin' (Dying to Live)" (2003)
Tupac Shakur foi assassinado a tiros em setembro de 1996, pouco menos de seis meses antes de seu rival Notorious B.I.G. também morrer baleado. Os casos nunca foram resolvidos, mas não faltam indícios para alimentar as teorias da conspiração de que a turma de um esteja envolvida na morte do outro. É inegavelmente uma das lendas urbanas mais interessantes da história da música pop. E ao mesmo tempo a prova cabal da imbecilidade do pensamento gangsta rapper, tão injustificável quanto a violência homicida entre torcidas de futebol.
A fusão de versos de Tupac e B.I.G. presente na trilha sonora do documentário "Tupac: Ressurrection", vai para o trono das presepadas listadas aqui não só por partir de dois mortos. Leva a medalha de ouro principalmente por ser uma fusão forçada, nonsense, bancada por quem só pensa em tirar mais um troco do resultado e que não está nem aí para os assassinatos entre rappers (que volta e meia ainda acontecem). O mash-up da hipocrisia.
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