quarta-feira, 21 de outubro de 2009

2000-2009: The iPod Years (Parte 2)


5-TV On The Radio - "Return to Cookie Mountain" (2006)




Se juntássemos a quantidade de lixo produzido em nome da sagrada herança musical negra nestes últimos dez anos, teríamos material para uma playlist eterna. Com a transformação de algumas vertentes do hip-hop em máquina de dinheiro em meados da década passada, o oportunismo e o mau gosto disseminaram pelas rádios e MTV um farto catálogo de pragas: canastrões de canto choroso, gostosas sem talento, rappers que contam vantagem cuspindo idéias neolíticas sobre a vida em geral, e odiosos duetos entre estes dois últimos exemplares da fauna.
Aí é que entra o TV On The Radio. Em uma visão rasa e racista, alguém poderia dizer que a banda novaiorquina é interessante por trazer músicos negros que não necessariamente apostam por R&B, ou gangsta rap, ou alguma dessas estéticas tão desgastadas normalmente associadas aos músicos afroamericanos contemporâneos.
Mas é óbvio que vai muito além disso. O TOTR impressiona porque criou em seus três álbuns ("Cookie Mountain" é o segundo) um mundo particular. E tal concepção rolou justamente porque seus integrantes souberam absorver e dar novos significados às pepitas desta mina de ouro que é a tradição musical dos EUA. E não lapidaram apenas as pepitas negras, por supuesto.
Este carismático planeta mostra sua geografia inconfundível em apenas 20 segundos de "I Was a Lover", a primeira faixa de "Return to Cookie Mountain". Estão, nestes poucos compassos, todas as marcas do grupo. Batidas quebradas desdobradas confrontadas a paredes vocais inspiradas pelo doo wop dos anos 50. Dando a liga, colchas de guitarra shoegaze coreografam com estranhos samples e teclados de ecos experimentais.
E, enquanto tentamos captar todas as nuances das vozes - atenção para os falsetes deslumbrantes do guitarrista Kip Malone -, nos convertemos em habitantes felizes de um território que ainda tem muito a ser explorado.
*Uma música: "A Method"


4-Beth Gibbons & Rustin' Man - "Out of Season"




É uma constatação cruel saber que o mundo fica mais belo quando Beth Gibbons está triste. Mas trata-se da mais pura verdade, e a gente já sabia disso desde "Dummy" o primeiro disco que a banda dela, o Portishead, lançou lá em 1994. Quando você a vê ao vivo num palco - os olhos fechados, o cenho franzido em desconsolo, a coluna arqueada em ângulo côncavo -, a vontade que dá é de levá-la para casa e envolvê-la num cobertor.
E, se Gibbons já nadava num mar de solidão quando cercada das cortinas de samplers e texturas do Portishead, imagine a distinta donzela inglesa quando despida de toda aquela áurea de mistério, e vista de muito perto. O que acontece, então, é a exposição das feridas de alguém que sofre, sofre e sofre, mas aguenta o tranco até o fim porque sabe que transformará a dor em arte. Pois, como geme Gibbons em "Sand River", "beauty's got a hold on me".
E, para que canções tão lindas e sentidas ganhassem um entorno à sua altura, o ex-Talk Talk Rustin' Man foi o maestro soberano. Costurou uma delicada teia de violões, órgãos, baixo acústico, cordas, metais, acordeom e outros tecidos típicos do folk renovado para converter os lamentos-canção da colega, se é que isso era possível, em épicos do intimismo.
Na imersão dos climas e versos, Gibbons ainda demonstra o porquê de ser uma das cantoras mais especiais dos últimos anos, remetendo tanto a Nick Drake quanto a Billie Holiday, entre outras lendas do sofrimento cantado. Mas não vá se desesperar por tanto desamparo. Siga os conselhos da própria Beth na maravilhosa "Tom The Model":
"You know you don't ever have to worry 'bout me/

I'd do it again".

*Uma música: "Sand River"


3-Radiohead - "In Rainbows" (2007)



Antes que a TORA (Torcida Organizada Radiohead te Amo) manifeste seu repúdio à ausência de "Kid A" nesta lista, é importante relatar alguns bastidores. Seguindo o regulamento do Mala da Lista de acordo com o qual uma banda só poderia ter um álbum no Top 10 da década, a idolatrada bolacha de 2000 jogou uma empenhada prorrogação com "In Rainbows". O empate persistiu, o que acabou levando a decisão às penalidades máximas. E aí na hora H, não teve jeito, apesar do talento dos batedores de "Kid A": Thom Yorke (tirombaço no ângulo), Jonny Greenwood (com efeito e paradinha), Ed O'Brien (toque seco no canto), Colin Greenwood (toque seco no meio) e Phil Selway (no contrapé do arqueiro).
"In Rainbows" venceu a eliminatória porque, antes de mais nada, ele É um pouco "Kid A". E É um pouco de "The Bends", "OK Computer", "Amnesiac".... suas dez faixas atestam que Yorke e equipe perceberam que não precisavam mais dedicar tanto tempo revirando do avesso as estruturas da Canção, ou descobrindo timbres tão ousados, ou criando atmosferas de tal estranheza para chegar "lá". A banda pop mais importante da década concluiu que, com seu arsenal composto por uma voz imortal, acordes e melodias insuperáveis e uma infinidade de ideias para arranjos originais, tudo poderia ser mais simples e natural.
Se "Kid A" era uma viagem sem volta a lugares jamais antes visitados - o álbum soa exatamente como uma regata, em barco também de gelo, às paisagens polares de sua capa-, "In Rainbows" é a assimilação desta trip na forma de melhores e mais objetivas canções. Que, para conforto da TORA, vêm embaladas em impenetráveis películas do experimentalismo acumulado em seis outros trabalhos de estúdio.
E que contam com algumas das melhores interpretações vocais da vida de Yorke. Vide "All I Need", "Videotape" e, sobretudo, "Nude", em que ele encarna uma espécie de Smokey Robinson pálido e tristonho anunciando a era glacial que se aproxima.
Nada, portanto, como a maturidade de quem sabe o que significa ter que continuar lançando álbuns, e que está ciente da expectativa que paira sobre eles. Mesmo após já ter dado ao mundo um "OK Computer" ou um "Kid A". Que venha o próximo.
*Uma música: "House of Cards"


2-Strokes - "Is This It" (2001)




De certa forma, "Is This It" é o "Nevermind" dos 00. Mais do que coincidência, o fato dos dois álbuns terem sido lançados nos primeiros anos de suas respectivas décadas foi sintomático. A ruptura proporcionada pelo trio de Kurt Cobain foi mais necessária, porque no final dos anos 1980 a situação do rock no mainstream era realmente crítica (Poison e Skid Row dominavam as paradas). Mas no crepúsculo dos 1990, com boybands e britneys dando as cartas e a eletrônica como um das únicas válvulas de escape de renovação, o rock também precisava de uma injeção de energia.


E "Is This It" foi bem mais do que uma dose cavalar desta energia. O disco acabou sendo o beabá de como este tal de rock seria resgatado pela milhonésima vez. Agora (ou melhor, lá em 2001), segundo a cartilha de Julian Casablancas e aqueles outros quatro guaperas, se daria bem quem pesquisasse o que aconteceu em Nova York entre 1967 e 1979. Em termos de música, visual e o estilo "sou novaiorquino, mando bem e não estou nem aí".
De Velvet Underground a Blondie, dos Ramones ao Television, não houve proto-punker que não comparecesse, ainda que na forma de uma leve citação, no coquetel estroqueano. Com a diferença - e uma importante diferença - que nenhuma destas vacas sagradas, com exceção dos Ramones, reuniu jamais gemas pop roqueiras tão irresistíveis em um mesmo álbum. Tanto foi assim que "Is This It" virou o disco de rock a ser batido na década... e pelo menos até o quinto bimestre de 2009 ainda não foi superado.
Como efeito colateral, da mesma forma que o Nirvana gerou o Silverchair e o Creed, e o grunge se desgastou relativamente rápido, o "novo rock" dos Strokes tem sua parcela de culpa indireta. Pela inspiração que infringiu às bandas emo e a toda esta classe de bundões sem imaginação que fizeram com que, no final da década, já estejamos de saco cheio desta estética pós-punk recuperada. O que era vanguarda virou um modelo cansativo: todas as batidas têm que ter a "urgência" disco-rock, os vocais são obrigatoriamente chorosos, os teclados precisam porque precisam emitir melodias melancólicas e grandiloquentes, e as letras que não forem meio engraçadinhas, irônicas, são descartadas.
2011 se aproxima e alguém precisa passar o rodo nesses aproveitadores e servir às massas alguma outra espécie de "novo rock". A missão dos Strokes já está mais do que cumprida.
*Uma música: "Modern Age"




1-OutKast -"Speakerboxxx/The Love Below" (2003)




Pesquisando uma resenha que escrevi na ocasião do lançamento deste álbum duplo, publicada em dezembro de 2003 pelo site da MTV (não passo o link porque não está mais lá), achei a frase: "é sério candidato a disco do ano e desde já corresponde a um marco na black music". Lembro de, naquele momento, refletir sobre a possibilidade de estar, na verdade, diante da obra-prima da década. Mas dei de ombros a meus próprios pensamentos, numa bipolaridade cética, ainda que cautelosa. Afinal, estávamos apenas no quarto anos dos 00.
Seis outros se passaram e agora eu posso anunciar que "Speakerboxxx/The Love Below" é (são), sim, o(s) disco(s) da década.
A começar pela ousadia do projeto, em realidade a soma de "Speakerboxxx", um álbum produzido e protagonizado por uma metade da dupla, Big Boi, e "The Love Below", comandado por seu companheiro Andre 3000. Por isso os parênteses do paráfrago anterior, indicando os plurais. Até a capa é dividida. Em cada um dos CDs, o "outro" era apenas um convidado e não metia muito o bedelho. Nem os Beatles se atreveram a fazer isso. E olha que com eles isso seria possível, já que quase sempre eram nítidas quais eram as músicas de Paul e quais as de John.
A iniciativa não só foi um êxito musicalmente, mas acumulou recordes comerciais e prêmios pomposos: papou o Grammy de Álbum do Ano do ano e é o título de hip-hop mais vendido da história dos EUA, com 11 milhões de cópias vendidas (ou 5,5 milhões + 5,5 milhões, é assim que se contabilizam as bolachas duplas). Claro que aqui ninguém se preocupa com o Grammy, mas é curioso quando seus ganhadores são também um exemplar discográfico de excelência.
No caso do petardo duplo do OutKast, o principal indício desta excelência, sem dúvida, foi a pretensão bem-sucedida de derrubar barreiras entre o que se espera dos rappers e a quantidade de estilos pelos quais os mais talentosos deles podem transitar. Caso se aventurem, é lógico. Neste sentido, sob o filtro da lente pop, o trabalho está muito mais para TV On The Radio do que para Snoop Dogg.
Pelas contas do Mala da Lista, das 29 músicas propriamente ditas (excluindo as 11 vinhetas) espalhadas pelas duas horas e quinze minutos de "Speakerboxxx/The Love Below", 22 são essenciais, além de perfeitamente aptas a hit. Uma matemática insana que, novamente, pode não ter sido obtida nem pelo "White Album".
E o fenômeno "Hey Ya!", o megasucesso que até o Roupa Nova regravou, surpreendeu a tal ponto a própria gravadora que praticamente não ouve tempo para promover outras "músicas de trabalho". Uma delas, "Roses", por exemplo, é uma das melhores canções pop não só desta, mas de todas as décadas. E acabou passando relativamente despercebida pelo grande público.
"Speakerboxxx", o primeiro disco, não tira o pé do acelerador até sua metade. Ainda que tenha se mantido um pouco mais atado à tradição dos discos hip-hop moderno - os interlúdios, as várias participações de peso (de Jay-Z a Cee-Lo), as complicadas rimas -, Big Boi foi revolucionário. Flertou com miami bass ("Ghetto Music"), funkeiras ao estilo P-Funk ("Bowtie"), a canalhice em hibernação do Earth Wind & Fire ("The Way You Move") e vanguardistas bases ("War"). Na segunda parte, segue uma pegada não tão inovadora, mas com elementos interessantes distribuídos por todas as faixas restantes.
Quando chegamos em "The Love Below", o segundo disco, o buraco é bem mais embaixo. E para mim o impacto ainda foi maior, porque acabei escutando-o antes de "Speakerboxxx". Não intencionalmente, o que ocorreu foi que a prensagem enviada pela Sony-BMG aos jornalistas estava com os nomes trocados. A gravadora fez uma espécie de recall de fábrica, mas no Mala da Lista o dano já estava causado.
Sozinha, a parcela que cabe a Andre 3000 neste latifúndio provavelmente já garantiria o caneco da década para a dupla. Uma gorda nuvem de inspiração sobrevoou o sujeito durante a produção das canções, que em seu caso foi bem mais individualista, sem quase espaço para participações.
Sim, eu ia dizendo canções. Pois Dre deixou o elemento rima quase totalmente de lado, utilizando-o em posologia discreta - como se seus raps fossem um solo de guitarra ou sax -, e resolveu cantar. E, se como solista sua voz despontou como um jovem e ainda mais escrachado Sly Stone, nos coros elas são de uma esperteza que não se ouvia desde os melhores momentos do Funkadelic.
Um leque de possibilidades que se multiplicou com a opção de 3000 em usar, em sua visionária irresponsabilidade, jazz ("Love Hater"), funk ("Behold a Lady") e psicodelia ("She's Alive"), entre outros sabores, para dar corpo a suas ideias. O arranjo de cordas ao final de "Pink and Blue" é emocionante, enquanto o doce dueto com Norah Jones em "Take Off Your Cool" dá a mensagem da década: "baby, take off your cool / I wanna see you".

Some-se a isso a capacidade de 3000 de extrair algo legitimamente novo a partir de múltiplas influências e seu hábito de pensar musicalmente com a cabeça de baixo (até no nome do disco), e entendemos porque ele foi comparado a Prince. Um paralelo adequado, eu diria, mas com o adendo de que 3000 tem mais senso de humor e menos ambiguidade sexual que baixinho. De uma forma ou de outra, o cara é um gênio dos 00 do qual nos lembraremos.

*Uma música: "Roses"

3 comentários:

  1. 1-Como membro do TORA, venho por meio deste manifestar meu repúdio à ausência de "Kid A" nesta lista.

    2-Tudo o que você falou sobre o Strokes é a mais pura verdade. Que diabos! Isso existia no passado, mas, com a globalização, a emulação vira um estilo musicial...

    3-Não aguento mais jornalistas que usam a palavra "urgência" para classificar batidas de disco-rock.

    4-E Yo La Tengo?

    5-Parabéns pelo texto e pelo blog! Tá foda!

    ResponderExcluir
  2. 1-Hehehehe
    2-Você vê...
    3-e "punhado de canções" também
    4-Vai pelo cojunto da obra, mas não por algum disco
    5-Valeu pra caramba

    ResponderExcluir
  3. setti, fiquei pensando um tempão sobre essa lista. Mas me dá aflição publicar a minha ordem pq parece que não dá pra voltar atrás se eu esquecer algum. Vale concordar?

    sim aos: strokes, tv on the radio, in rainbowns...

    colocaria ainda arcade fire (funeral), interpol (antics), bjork (greatest hits, vale?), nin (with teeth) e... vixe, que difícil! tenho que pensar mais! ta vendo? ja to com aflição!

    adorei o post!! bjs bel

    ResponderExcluir

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.