terça-feira, 29 de setembro de 2009

Calouros de luxo





Quem tem amigo ator – e quase todo mundo tem um, ou que aspira a tal – nota que, vira e mexe, eles estão “trabalhando a voz”. Não só porque impor o gogó em cena é necessário, sobretudo no teatro, mas também porque quando menos se espera, um papel pede uma palhinha musical em determinado momento de tal peça, filme, série, novela ou performance.
É o caso das figuras selecionadas neste novo Top 10, que traz atores e atrizes em gloriosas e imprevisíveis aparições musicais no cinema.  Foram privilegiadas as interpretações mais surpreendentes, que revelam um pouco ou muito mais sobre a própria personalidade destes cantores improvisados, e até dos diretores e roteiristas por trás das referidas cenas. Tais atores ou atrizes, quando bancam cantores, estão mais vulneráveis, humanos, e boa parte dos momentos musicais que protagonizam contribuem para a eternização de algumas películas importantes.
Não valem, é claro, os musicais. Em primeiro lugar porque dificilmente não são chatos ou cansativos; em segundo, porque não trazem nada de espontaneidade, já que seus atores se exaurem em aulas de canto e têm pretensões de “artista completo”, aquele que atua, canta, dança… também ficam de fora cenas ótimas em que os astros dublam, como a loirinha Melissa George fazendo caras e bocas sobre “I’ve Told Every Little Star”, de Linda Scott, na sombria audição de “Mulholland Drive” (2001), ou Penélope Cruz chorando ao emular Estrella Morente num restaurante em “Volver” (2006). Só quem soltou mesmo o gogó, ainda que por cima da gravação original, passou no crivo do Mala da Lista.
*Menção honrosa para o ator catalão-alemão Daniel Brühl cantando a imbatível “Suzanne”, de Leonard Cohen, no filme “Salvador” (2006), que foi impossível de encontrar.

10-Chiara Mastroianni canta “Eye of the Riger” (Survivor) – “Persepolis”, 2007
O sangue de azul de Chiara Mastroianni – a atriz só é filha do Marcello Mastroianni com a Catherine Deneuve – não impediu que ela se despisse de qualquer noção de ridículo para desafinar neste hino kitsch oitentista, parido também para uma trilha sonora – a de“Rocky IV” (1985). Ele volta aqui como um escrachado cântico de auto-ajuda à protagonista desta fundamental animação, baseada no ainda mais obrigatório livro homônimo da iraniana Marjane Satrapi. Francesa, é claro que Chiara não deixaria de exagerar no sotaque para elevar o índice de deboche da cena.



9-Malcolm McDowell canta “Singing in the Rain” (Gene Kelly) - “A Clockwork Orange”, 1971
É quase tão desconcertante quanto a ultraviolência gratuita dos droogs ou o desumano tratamento Ludovico: Alex, o líder da turma de hooligans, canta e baila alegremente “Singing in the Rain” enquanto viola uma mulher e espanca seu marido.
Mestre na recontextualização de músicas conhecidas nas trilhas de seus filmes, Stanley Kubrick foi especialmente perverso na escolha da canção de Arthur Freed e Nacio Herb Brown popularizada por Gene Kelly em filme homônimo de 1952. Sobrou para Malcom McDowell puxar na crueldade e no sarcasmo. A fórmula, aliás, que consagrou a tal Laranja Mecânica.



8-Javier Bardem canta “Por el Amor de una Mujer” (Julio Iglesias) – “Huevos de Oro”, 1993
Karaokês são um interessante brinquedo pop (ver também item 1 desta lista). Aliados à breguice, um bom ator e um ousado diretor, tornam-se irresistíveis. Em “Huevos de Oro”, do polêmico cineasta espanhol Bigas Luna, o novo rico Benito, vivido por Javier Bardem, é obcecado por este dramalhão de Julio Iglesias. A canção “evolui” na trama e acaba passando de trilha de fundo a peça importante do roteiro quando, numa crise de ciúmes – de suas duas mulheres – Benito sola:
Por el amor de una mujer/

Jugué con fuego sin saber/

Que era yo quien me quemaba…
Não preciso nem dizer para reparar nos trajes do pessoal, especialmente a sunga do cidadão com o qual se irrita Benito, e também no momento em que ele percebe que fio do microfone é curto. Também vale lembrar que o elenco trazia não só Bardem, mas uma série de outros atores castellano-hablantes que viriam a triunfar mundialmente, como Benício del Toro e Maribel Verdú, além da portuguesa Maria de Medeiros. 


7-Vários cantam “Wise Up” (Aimee Mann) – “Magnolia”, 1999
Você aí que, como escreveu Álvaro de Campos em seu “Poema em Linha Reta”, foi “tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil”. Você que, como o conhecido descrito por Mano Brown em “Capítulo 3, Versículo 4”, está “viciado, doente, fodido, inofensivo”: junte-se a nós. Estamos todos na lama e nem por isso vamos deixar de cantar.
É mais ou menos este o mote desta célebre passagem de “Magnolia”, de Paul Thomas Anderson, que só não levou o caneco de mais inusitada do filme porque competia com a chuva de sapos no final. Mas trata-se de uma verdadeira ode à aceitação da depressão e a celebração da derrota, entoada em coro pela nata do cine indie americano (William H. Macy, John C. Reilly), reforçada por pelo menos um figurão do alto clero de Hollywood (Tom Cruise) e por gente que passou do primeiro ao segundo grupo ao longo desta década (Julianne Moore, Philip Seymour Hoffman).
A infiel, o loser, o traumatizado, a insegura, o complexado. Todos se unem nesta espécie de “We Are the World” da era Prozac. E preparem-se pois, como diz a americana Aimee Mann no refrão, “It’s not Going to Stop”.





6-Marieta Severo e Daniel Oliveira cantam “As Rosas não Falam” (Cartola) - “Cazuza, o Tempo não Pára”, 2004

O único aspecto positivo que Cazuza enxergava sobre ter sido batizado como Agenor é que ele compartia nome com um ídolo, Cartola. Na hora de adaptar para a tela o livro “Só as Mães são Felizes”, da mãe do cantor, Lucinha Araújo, os roteiristas Fernando Bonassi e Victor Navas tiveram o cuidado de incluir duas homenagens ao sambista. Ambas, “O Mundo é um Moinho” e “As Rosas não Falam”, estão no possivelmente melhor disco da história da música brasileira, “Cartola” (o de 1976, com Dona Zica na capa). No minuto 8’29” deste trecho, Daniel Oliveira de Oliveira (Cazuza) e Marieta Severo (Lucinha) dividem os vocais em uma interpretação da espetacular canção.


)



5-Vários cantam “Tiny Dancer” (Elton John) - “Almost Famous”, 2000

Esta fez tanto sucesso, independentemente até do filme, que ajudou a recuperar o prestígio de uma velha balada de Elton John, presente originalmente no álbum “Madman Across the Water”, de 1971.
Como todas as outras do disco, teve sua letra escrita pelo antigo parceiro do cantor e pianista, Bernie Taupin.  Assim que, se o que te emociona são os versos, dê graças a Taupin, e não a John. Mas imagino que, como aos vários atores que cantam na cena para espantar a ressaca e o clima pesado de uma briga – entre eles Kate Hudson e Jason Lee -, o que te pega é a melodia, ou o conjunto melodia+letra, ou simplesmente “a magia do momento”.
Fácil de dizer também que este é um dos “filmes de música” mais legais, por ser baseado numa experiência real do diretor Cameron Crowe (sim, o cara colaborava com a Rolling Stones ainda na puberdade) e pelo retrato romântico da primeira metade dos anos 1970 na música. Algo que ele já fizera, mas com um viés mais irônico, com a cena grunge dos 1990 em “Singles” (1992).



4-Nicolas Cage canta “Love me” (Elvis Presley) - “Wild at Heart”, 1990

Pode procurar. Sempre será possível achar referências à estética americana dos anos 1950 e do comecinho da década seguinte na obra de David Lynch, seja nos longas, curtas ou na inigualável série “Twin Peaks”. As mais evidentes são sempre as roupas, os penteados e as músicas das trilhas sonoras.
Como no item 6 desta lista, Lynch oferece um tributo duplo a outra lenda, Elvis Presley, na voz de Nicolas Cage, ou Sailor, o protagonista do inesquecível filme lançado no Brasil como “Coração Selvagem”. Cage, que daria canja vocal em trilhas de outras produções, como “Leaving Las Vegas” (1995), não deixa a peteca cair em interpretações das baladas “Love me” e “Love me Tender”, ambas lançadas pelo Rei em 1956. A primeira ficou a melhor. Em ambas, a musa é a maravilhosa Laura Dern (atualmente casada, aliás, com um músico: Ben Harper).





3-Jack Black canta “Touch Me” (The Doors) - “School of Rock”, 2003

Jack Black é meio como Jim Carrey: às vezes suas micagens podem te irritar ao extremo, mas muito frequentemente também elas te causarão gargalhadas espasmódicas. Goste ou não do cara, o versátil Richard Linkater, diretor de “School of Rock” que também assina outros longas  totalmente diferentes e bons, como “Fast Food Nation” e “A Scanner Darkly” (ambos de 2006), não poderia ter escolhido outro ator-palhaço para o papel do professor de rock.
O fato de Black já cantar e tocar (tem a escrachada dupla Tenacious D) ajudou, mas fica até em segundo plano considerando o enfoque sem noção que o ator dá ao personagem: um roqueiro decadente e sem talento, mas que se leva extremamente a sério como artista e vê o ofício de ensinar rock a pequenos almofadinhas, ainda que de improviso, como a mais intocável das obrigações.
São vários os momentos hilários do filme. Mas este, que tem como aperitivo aulas de riffs de guitarras de Black Sabbath, Deep Purple e AC/DC, e ainda um grand finale com Black solando com pouquíssima noção diante das crianças, é o campeão.





2-Cliff Gorman canta “Cold Lamping” (Public Enemy) - “Ghost Dog – The Way of the Samuray”, 1999

“Yeah!!! Niggers, indians… the same thing!”. A escrotidão do mafioso de chapéu e óculos sentado à mesa é só mais um dos componentes de uma das melhores sequências da filmografia de Jim Jarmusch. Um dos gângsters (que é a cara do Fat Tony, de “Os Simpsons”) está tentando explicar para seus chefes que o matador que eles buscam atende pelo codinome de “Ghost Dog”. O único que se anima a dar alguma explicação para o apelido é Sonny Valerio (vivido por Cliff Gorman, falecido em 2002), porque é fã de hip-hop. O que vem depois – as rimas de Flavor Flav que Valerio manda do nada e a dancinha que ele ensaia no banheiro antes de levar bala na testa – é pura arte nonsense cinematográfica.



1-Bill Murray canta “More Than this” (Roxy Music) - “Lost in Translation”, 2003

Se soubesse dirigir filmes, eu faria exatamente como Sofia Coppola, ou o Cameron Crowe ali do item 5: passaria dias, semanas, meses escolhendo o momento certo de inserir minhas músicas preferidas em passagens cruciais de minhas películas. Arriscaria até dizer que algumas das cenas de “Lost in Translation”, inclusive, surgiram da necessidade da diretora de enfiar estas canções na história.
Como por exemplo “Sometimes”, do My Bloody Valentine, tornando ainda mais doce a cena da volta de Charlotte (Scarlett Johansson) e Bob Harris (Bill Murray) para o hotel num táxi; ou “Too Young”, do Phoenix (grupo daquele que seria o futuro marido de Sofia, Thomas Mars), embalando a dupla e Charlie Brown (Fumihiro Hayashi) na noitada. O já clássico final cliffganger, com “Just Like Honey” de The Jesus & Mary Chain ninando o choro de Charlotte e o sorriso de Bob, jamais seria o mesmo com outra música de fundo. Só que nenhuma dessas canções, tão importantes na trilha, nem nenhum dos belos temas originais de Kevin Shields (do próprio MBV) criados sob encomenda, são cantados pelos atores.
Para isso, voltemos à ferramenta do karaokê, tão sabiamente empregada no roteiro de Sofia. Todo mundo que passa pelo microfone na cena da balada manda bem: Charlie Brown incendia a casa com “God Save The Queen”, dos Sex Pistols, Charlotte improvisa uma graciosa versão de “Brass in Pocket”, dos Pretenders, e a releitura de Bob para “(What’s So Funny ‘Bout) Peace, Love and Understanding”, de Nick Lowe, é empolgante. Mas o próprio Bob Harris, ou Bill Murray, cantando “More Than This”, da fase mais pop Roxy Music, é a chave da trama.
Pouco depois dos primeiros e bêbados versos, “I could feel at the time, there was no way of knowing”, as danças de foco da câmera mostram a atenção que ela presta ao crooner cinquentão. Quando Bob se dá conta e seu olhar cruza com o de Charlotte, está cantarolando “more than this, you know there’s nothing more than this”, e os dois percebem a adequação da letra ao momento. O flerte que era velado passava a ser escancarado. Mas a sentença decretada por Bryan Ferry - sabiam Charlotte e Bob - seria provavelmente a mais dura das verdades daquele affair. "Você sabe que não há nada além disso".
Nunca teremos acesso ao segredo final – embora na internet sigam fervendo teorias a seu respeito, inclusive com leituras labiais atentas aos sussurros de Murray no ouvido de Scarlett -, mas no mundo real a tendência seria que o ator (secundário) Bob voltasse, um milhão de dólares mais rico e ainda mais decadente, aos braços de sua mulher, a chata dos carpetes. E a meiga e sonhadora Charlotte passaria pelo menos mais alguns meses tentando achar motivos para permanecer ao lado de seu marido pau-mole, o fotógrafo John (Giovanni Ribisi). Que, segundo quem defende o aspecto autobiográfico do script, seria o genial diretor de longas e clipes Spike Jonze, ex de Sofia Coppola. 
Já imaginou fazerem um filme tão bom só para contar o quão mau marido você é?

  








4 comentários:

  1. mto bom esse post! concordo 100% com o primeiro lugar.

    Mas senti falta de uma cena aqui... de um filme água-com-açucar ótimo, em que o hugh grant que vive uma vida sem grande emoções (deprê) descobre o frisson de ser rockeiro e herói por um momento. About A Boy, ou "Um Grande Garoto", do muito-legal Nick Hornby.

    http://www.youtube.com/watch?v=VsQ60rcEUjk

    bjs
    Bel

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  2. Podes crer, "About a Boy" podia ter entrado. A molecada não perdoava o menino de cabelo caneca cantando "Killing me Softly"...

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  3. A cena 5 é uma das mais classes dos últimos anos. E a música da Aimme também. O filme foi baseado nas músicas dela. Simplesmente espetacular. E o personagem que põe aparelho para seduzir o barman também ganha uma medalha. hahahahaha

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  4. Muito foda esse post, Setti!

    A melhor é a da Aimme mesmo! Tenho que concordar com o cara aí em cima!

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