quarta-feira, 24 de março de 2010

Gringos x Latim



Alertou o sempre atento blog Cilada Mental de que Mike Patton lançará disco com clássicos do kitsch pop italiano. Não será a primeira vez que o hiperativo vocalista do Faith No More se aventurará no idioma – em 1997 ele lançou o álbum ítalo-experimental “Pranzo Oltranzista” e em 2005 foi curador de coletânea em homenagem ao maestro das trilhas sonoras Ennio Morricone. E muito menos será seu début em línguas latinas. Já na primeira vinda do FNM ao Brasil, em 1991, o cara surtou com o português e aprendeu centenas de palavras e frases, as quais não parava de declamar em entrevistas e shows. Seu momento de glória foi um “la polízia va a tomar no cue!” num show no Olympia, em São Paulo. “Eu amo aprender idiomas o suficiente para que possa ofender as pessoas. Faz com que elas pensem que você gosta delas!” me explicou Patton sobre sua técnica em uma entrevista para a extinta Bizz em 2007. “Eu falo um pouco de português, mas há tempos não pratico”.

Lembrei então de nossa roommate, que na semana que vem parte de volta a Portland, nos EUA. Após quase três meses de Barcelona, o grau de seu aprendizado de espanhol pode ser medido pelo “what?” que ela soltou após ouvir um “hola, ¿qué tal?” há poucos dias. Sua performance patética ilustra a monstruosa dificuldade que ingleses-americanos-canadenses-australianos e afins costumam ter ao enfrentar as línguas latinas, ainda que elas os fascinem. E mesmo os gringos que têm suposta facilidade para novos beabás, como Patton, podem proporcionar preciosas e engraçadíssimas amostras do macarronismo. Uma coisa levou à outra e resolvi terminar um Top 10 que já vinha arquitetando, o de anglofalantes tateando na escuridão dos idioma latinos, essas galáxias de conjugações e fonemas que estão a anos-luz de sua compreensão.

Valem só as canções com versos criados pelo ou para o intérprete. Versões traduzidas ficam de fora, portanto (que dor é tirar “La Complainte du Partisan”, cantada por Leonard Cohen, por exemplo...). Selecionei as que considero as dez mais marcantes, incluindo aí as mais toscas, as mais bonitas, as mais sem noção, as mais engraçadas e as que mais funcionaram, simplesmente. Duas de português, duas de espanhol, duas de italiano e duas de francês. Poderia ter varado a noite em busca de algum popstar que tenha gravado algo na quinta língua latina mais mainstream – o romeno –, mas preferi completar a lista com dois brasileiros que foram garimpar idiomas mais underground da família latina. Vamos ver no que vai dar.


10-Mr Bungle macarroneia um italiano – “Violenza Domestica” (1995)


Começamos direto com um dos incontáveis - além de mais antigo – projetos de Mike Patton. Inclui até um “ma perchè?”, com sotaque razoável e a mãozinha de italiano no gesto clássico (todos as pontas dos dedos juntas, mão para cima e para baixo).




9-The Clash enrola em espanhol – “Spanish Bombs” (1979)

Começa bem. A melodia é das melhores de toda a discografia da banda, e a temática homenageia os soldados que fizeram frente a Franco na Guerra Civil Espanhola (1936-1939). Mas o refrão dá uma desandada com frases um pouco sem pé nem cabeça: “Spanish bombs yo te quiero infinito, yo te quiero, oh my corazón". Que fica mais engraçado pelo “quiero” com som de “cuero” cantado por Joe Strummer e Mick Jones. O último aliás gostou da ideia e voltou ao spanglish na ainda mais clássica “Should I Stay or Should I Go”, que gravaram dois anos depois.




8-Beatles sem noção de italiano – “Sun King” (1969)

Eu imagino que nem Lennon e nem McCartney tinham mais muito saco para ficar pensando nos versos ideais, uma vez que já sabiam que estavam gravando o último disco dos Beatles, “Abbey Road”. E simplesmente ficaram a fim de enfiar umas palavras em suposto italiano para enfeitar uma canção de instrumental a arranjo vocais espetaculares, “Sun King”. Ligaram então um botão random imaginário e até um “obrigado” entrou na salada:

Quando paramucho mi amore de felice carathon.
Mundo paparazzi mi amore cicce verdi parasol.
Questo abrigado tantamucho que canite carousel.





7-Caetano arrisca um catalão – “Vaca Profana” (1988)

A letra fala de várias cidades brasileiras e européias, entre elas Madri e Barcelona, usando expressões e palavras bem espanholas, como “mala leche” e “pureta”, e aludindo à “Movida Madrileña”, o movimento cultural dos anos 1980 do qual participou Pedro Almodóvar, entre outros. Mas Caetano foi além. Citando Gaudí, as “ramblas do planeta” e dizendo que “também te mata Barcelona”, mandou ainda um “horchata de chufa, si us plau”. Bem para dizer que esteve mesmo na Catalunha: “si us plau” é “por favor” em catalão (reparem como é primo-irmão do “s'il vous plaît” francês), e “horchata de chufa” é um refresco doce bem daqui - e que eu nunca experimentei. Ou melhor, mais precisamente de Valência, que para os independentistas faz parte dos não-reconhecidos Països Catalans (Países Catalães). Uma discussão da qual vou poupar-lhes agora, e vocês ainda me agradecerão por isso.
*O vídeo tenta acompanhar cada verso com uma figura, é lamentável. Mas a música vale bastante a pena.






6-Stevie Wonder se aproveita do português - “Bird of Beauty” (1974)

Ritmicamente, é o caso clássico de gringo que foi tentar fazer um samba, não soou como o planejado, mas o resultado acabou sendo um groovão pra lá de interessante. Aí faltava dar o “toque brasileiro” extra. E aí é que mora o perigo: “tudo bem, você deve descansar a sua mente / Não faz mal o que vai acontecer daqui pra fente /Vai cantar alegria que chegou tão de repente / Voce coração assim tao feliz / Já vai cantar carnaval”. Um lance bem Zé Carioca, bem olelê-olalá do Sr. Wonder. Mas a gente perdoa porque a música é mó legal. Ah, e tinha vídeo de um show ao vivo, mas o embromation de português é incompreensível. Além de que a original de estúdio é muuuito melhor.




5-La Belle provoca em francês – “Lady Marmelade” (1974)

A célebre frase, "voulez-vous coucher avec moi ce soir?" (“você quer dormir comigo esta noite”), foi roubada de uma peça de Tennessee Williams, dizem os oráculos de internet. Mas, ao ser musicada, foi uma bola no ângulo em termos de gancho pop. Um refrãozão e tanto feito sob encomenda para as garotas do Labelle nos anos 1970 e reaproveitado por Christina Aguilera, Pink e outras – todas vestidas de piranhas - um quarto de século mais tarde.




4-Legião Urbana desenterra galego-português – “Love Song (Cantiga de Amor)” (1991)

Aqui o lance de musicar velhos versos foi bem mais profundo. Renato Russo e seus comparsas buscaram lá no repertório do trovador Nuno Fernandes Tornelo, do século XIII, uma cantiga de amor em galego-português, o idioma do norte da península Ibérica na época. O galego, uma das quatro línguas oficiais da Espanha moderna (as outras são castelhano, catalão e basco), é o portunhol institucionalizado. Ou melhor, é o “espanhês”, já que soa como se o espanhol tivesse se metamorfoseando em português, e não o contrário, como no dialeto sem-vergonha que os brasileiros improvisam quando vão a Bariloche. Sendo assim, as palavras podem ser a exata fusão dos dois idiomas. Por exemplo, temos “pessoa” em português, “persona” em castelhano e “persoa” em galego. Enfim. Aqui vai a letra da cantiga e a boa versão da Legião, que uma professora me apresentou em uma aula de literatura no primeiro colegial:

Pois naci nunca vi Amor
e ouço d'el sempre falar
Pero sei que me quer matar
mais rogarei a mia senhor
que me mostr'aquel matador
ou que m'ampare d'el melhor





3-Beatles rimam em francês – “Michelle” (1966)

Antes de aloprarem o italiano com “Sun King”, os Beatles criaram “Michelle”, cujos versos em francês, elaborados com a ajuda de uma professora do idioma, eram corretos: “Michelle, ma belle / Sont les mots qui vont très bien ensemble / Tres bien ensemble”. Não era preciso entender picas de francês, como é meu caso (aliás, tomara que esteja mesmo escrito certo isso aí em cima). Tratava-se da tradução do primeiro verso da música, em inglês, que queria dizer basicamente que “eram palavras que soavam bem quando combinadas” Todo um clássico, é claro.



2-Beck triunfa em espanhol – “Loser” (1994)

Eu já estava selecionando alguma das canções que do Pixies com trechos em espanhol quando a também sempre atenta e infalivelmente brilhante Anita me lembrou desta. Seria um crime deixar de fora uma música que, ao festejar o derrotismo, paradoxalmente triunfa em grande estilo. É o brado definitivo do spanglish: “Sooooy um perdedor / I’m a looser baby / So why don’t you kill me”. Fora o vídeo imperdível, bem do comecinho do Beck, em sua faceta mais “weirdo”.



1-Faith No More esculacha em português – “Caralho Voador” (1995)

Olha o Patton aqui de novo. E vem para levar medalha de ouro pela cara-de-pau generalizada: por compor uma bossa nova ao mesmo tempo chinfrim e irresistível; pela escolha do título; e por escrever “de orelhada” o trecho em português no encarte, cheio de erros hilários, e que faz com que nada faça nenhum sentido.

Eo non posso dirigir
E agora a pares
Neo dedu indehado
No neo naris


Fazendo as adaptações devidas, fica assim:


Eu não posso dirigir
E agora aparece
Meu dedo enterrado
No meu nariz


O que até faz sentido, mas ainda assim é bem absurdo. Melhor que isso só o próprio Faith No More encarnando os cantores de churrascaria os quais ironizavam com esta bossa de teclado Casio há quinze anos. Agora, com os quilos a mais do revival espremidos nessas camisas postas para dentro, aquela cena está completa.











4 comentários:

  1. Se servir de estímulo, estou aprendendo muito com seu blog! Genial! Abraço!

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  2. Gostei especialmente da parte 'atenta e infalivelmente brilhante Anita'! Tá ótima e engraçada a lista! Beijos

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  3. Caro Daniel, já sou um diário apreciador do seu blog há tempos, quando tive a indicação pelo meu irmão, Rodriguinho Mello, que te conheceu aí em Barcelona. Sensacional!
    Sobre o post dos latinos x gringos, genial. Fica a lembrança de Psycho Killer, do Talking Heads, com o refrão-grude-na-cabeça, em francês: "Psycho killer, qu'est-ce que c'est!"
    E a parte hilária do David Birne arriscando mais palavras na língua de Napoleão:
    "Ce que j'ai fait, ce soir-là
    Ce qu'elle a dit, ce soir-là
    Réalisant, mon espoir
    Je me lance vers la gloire"
    Fica a lembrança!
    Grande abraço e parabéns pelo blog!
    Fernando.

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  4. Nossa, vc desvendou um mistério da minha vida! Assim como um dia eu descobri que as panelas amarelas do Paralamas era na verdade favela da maré, vc me iluminou colocando a música do Beck! Soy un perdedor! Eu nunca conseguia entender o que ele dizia nessa parte!

    Ah, e adorei a língua afiada neste post! hehe

    Ah, e o detalhe pro número 1, o FNM está em Santiago do Chile cantando bossa nova em português e agradece dizendo obrigado.

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