Ano de 2021. Às 8h50 você abre os olhos e enxerga seu filho de seis anos, o caçula, em posição de sentido ao lado de sua cama. Antes que ele te relembre, ansioso, de que estamos em um sábado e você ficou de levá-lo na casa daquele endemoniado amiguinho, a primeira violenta palpitada em seu cérebro denuncia uma nova e braba ressaca. Precisamente a número 603 de seu currículo. Uma marca invejável, embora o número 602, de acordo com o seu atual andar de carruagem, tenha ocorrido no já longínquo day after do reencontro escolar de 2019.
É preciso ganhar tempo. Bernardo, o seu filho (agora estão na moda nomes pomposos como este) já está de cabelo penteado a contragosto e começa a demonstrar sinais de impaciência. Aí você aproveita para recapitular o que aconteceu na noite anterior.
Sim, foi isso mesmo. Voltaste às 6h15, trançando as pernas, da Do You Remember The 00's?, a festa que aquele cara com quem você trabalhou uma época remota resolveu organizar. Seguindo a infalível tendência de reverenciar a música de duas décadas atrás, o sujeito foi o pioneiro no revival dos anos 2000. Tinha até uns quarentões combinando terno com tênis Adidas e umas quarentonas enxutas imitando os penteados da Cat Power. E a música tendia ao rock, veja só, tocada por um DJ especializado na técnica vintage de disparar músicas desde dois iPod.
Corta. Como vocês viram, quis brincar com o recurso narrativo mais em voga atualidade, o flash foward. Ele está por toda parte, seja em séries como "Lost" e, a-han, "Flash Foward", no livro "Slam", de Nick Hornby, ou até, de certa forma, no filme "The Curious Case Benjamin Button". Mas imagino, de verdade, que as chances de situações como a de acima ocorrerem com milhões de pessoas em 2021 sejam grandes.
Para isso, o Mala da Lista já prepara, com mais de uma década de antecedência, o playlist da tal festa. Ou seja, as canções internacionais que, em dois segundos, te transportarão de volta aos 2000's. Da mesma forma como hoje em dia você volta aos 80 com um simples acorde de Echo & the Bunnymen, Michael Jackson, Cure, Smiths e Madonna, ou aos 90 quando soam nas caixas Smashing Pumpkins, Deee-Lite, Blur, Nirvana e, outra vez, Madonna. Como não haverá muito tempo a perder e todo mundo terá muito o que fazer no dia seguinte, o Top 10 da festa será objetivo. Ou seja:
1-Não são necessariamente as minhas músicas favoritas da década, e sim as que mais a identificam. Embora considere todas boas. Oras, me recuso a viajar no tempo oferecendo emo, nu-metal ou outras várias espécies de lixo que também representam estes 2000's. Para ouvir este tipo de som você precisará recorrer à noite "Trash 00's" que lançarão em 2022 num novo bar no centro de São Paulo, o Michelangelo.
2-Todas têm que ter sido grandes hits, ou seja, não espere Radiohead, TV on The Radio ou outros queridos e tão típicos da nossa era. Eles são geniais, mas menos massivos que os aqui selecionados.
Pois chega de lerolero. Aqui, o Playlist gringo da Do You Remember the 00's edição inaugural em 2021 (por ordem de identificação do hit com a década):
Só ela conseguiu. Enquanto umas vinte canções da Madonna são sinônimo de 1980's e mais uma meia-dúzia são puros 1990's, esta década começou com a loira marcando seu território graças a seu conhecido método: atualizar sua agenda de produtores para superar novos concorrentes. Nisso, ela provou que é mais eficiente até do que o Michael Jackson. A bola da vez da Madonna 2000 foi o suíço Mirwais, que reinventou mais uma vez o potencial de pista da cantora com um pancadão de frescos timbres, graves de tremer as paredes, vocoders e tecladinhos espertos. E ainda contou com Ali-G, o irmão mais velho do Borat, no clipe. Até a Adriana Calcanhoto fez cover. "Era a música que queria ter feito", me disse a gaúcha numa entrevista em 2002.
Agora em 2009 a figura de Kanye West dá até uma certa preguiça, de tão superexposta. Mas isso está diretamente ligado ao quão talentoso e prolífico o cara é. Antes de estrear como artista solo em 2004 com "The College Dropout", já figurava como produtor em dezenas de álbuns de hip-hop e R&B, incluindo de pesos pesados como Jay-Z. Depois do début, a lista de colaboradores dobrou e, de forma impressionante, ele seguiu sacando um álbum por ano. Algo que ninguém do primeiro time do mainstream se aventura a fazer. O segundo, "Late Registration", é excelente e quase entrou no Top 10 da década do Mala da Lista. Companheiro a samples de gente como Curtis Mayfield e Gil Scott-Heron presentes no disco, o trecho de "I Got a Woman", de Ray Charles embalou "Gold Digger", o petardo do ano sobre mulheres aproveitadoras que namoram rappers. Aqui, a versão sem a ridícula censura da "N word" do refrão ("I ain't sayin' she's a gold digger/ But she ain't messing with no broke niggers").
8-Coldplay - "Clocks" (2002)
Aproveite que este será o momento mais calmo da noite, e você poderá acertar as diferenças com aquele affair que tinha futuro, mas acabou mal por algum motivo. E aproveite que não é sempre que um riff de piano cativa multidões. Acusado de imitar o Radiohead (discordo, acho que a voz de Chris Martin tem muito mais de Ian McCulloch do que de Thom Yorke), o Coldplay chegou comendo pelas beiradas e acabou virando o sucessor do U2 como "banda de estádio". Prefiro
o primeiro álbum, "Parachutes" (2000) - suas primeiras seis músicas são
impecáveis - e não tenho muito interesse no terceiro ou no quarto. Mas o
segundo, "A Rush of Blood to the Head", e o pop suave de "Clocks"
determinaram o status de megagrupo.
Esse lance de superexposição que volta e meia é motivo de resmungos aqui poderia abrir, fácil fácil, uma exceção para a Beyoncé bailando com pouca roupa. Pode parecer um comentário troglodita, mas é apenas uma constatação de que me rendo a seus encantos. E não estou só: todo mundo, homens, mulheres, transexuais, velhos, crianças, acaba parando só para dar uma espiadinha quando aparece um clipe na moça na TV. E ela não é vulgar, como tantas contemporâneas. E seus hits são grudentos e com produção da pesada. E ela sabe cantar. Ora, quem não gosta da Beyoncé?
6-Franz Ferdinand - "Take me Out" (2004)
Roqueiros escoceses que vestem roupas de grife, têm cabelos milimetricamente penteados e tendem a usar ritmos "funkeados" ou "disqueados" em suas músicas. Poucas coisas podem sem mais 2000's que isso. O bacana do Franz Ferdinand em seus melhores momentos é que se trata de uma banda com formato clássico (quarteto com duas guitarras, baixo e bateria) soando com uma potência de produção de hip-hop e coesão perfeita para as pistas. Mesmo com uma faixa como "Take me Out", que muda de andamento na metade, algo muitíssimo raro em grandes hits.
5-Gnarls Barkley - "Crazy" (2006)
Para nosso prazer, existe um enxame de artistas hip-hop que experimenta para valer, obtendo parte fundamental do que mais importa na música pop contemporânea. No clube de elite dentro desta turma estão os que ainda por cima conseguem fazer muito sucesso. Como por exemplo o Kanye West ali do número 9, The Roots uma ou outra vez, o OutKast... e o Gnarls Barkley. O fato de "Crazy" ter sido um fenômeno comercial, mesmo com sua letra pesada sobre loucura e abusos químicos, é uma lufada de esperança de que a música boa ainda possa dominar o mundo. Se alguém chegasse para um produtor da Stax em 1966 e, com o uso do flash foward, mostrasse que 40 anos depois a soul music soaria desta maneira, ele diria um "oh, yeah" cheio de animada aprovação. E definitivamente não muitas coisas podem ser mais legais do que Cee-Lo, Danger Mouse e banda de apoio vestidos de personagens de "Star Wars" para cantar a música.
4-Strokes - "Last Nite" (2001)
Já com vários uísques na cabeça, você esperará alguns compassos da guitarra introdutória para se certificar de que é mesmo aquela música que está tocando. Quando entrar a bateria, você emitirá um urro gutural e comentará com o amigo do lado, o qual você tem visto uma vez a cada dois anos, mais ou menos, de que estavam juntos a primeira vez que a escutaram. E argumentará, soltando o bafo de álcool na cara dele, que clipes oficiais cujo áudio são na verdade uma gravação ao vivo mandam bem. E que clipes em que o microfone da bateria cai sobre o baterista (minuto 2'17), e ele aproveita para contar com as baquetas em cima do pedestal, e o guitarrista tenta ajudar mas só atrapalha, são ainda melhores.
Eu não conhecia a Amy Winehouse do primeiro disco, "Frank" (2003). Ela tocando "Rehab" em uma edição do programa inglês "Jools Holland" (todo um clássico dos 00, apesar de existir desde 1992) foi sua primeira para mim. Tudo ali chamava a atenção, da voz ao figurino, da expressão corporal à canção. Grande candidata a piada interna da festa. Afinal, ela poderá ter ingressado pela centésima vez em uma rehab no dia anterior, ou será evangélica, ou estará num reality show de celebridades decadentes, ou... bom, deixa para lá.
Já com vários uísques na cabeça, você esperará alguns compassos da guitarra introdutória para se certificar de que é mesmo aquela música que está tocando. Quando entrar a bateria, você emitirá um urro gutural e comentará com o amigo do lado, o qual você tem visto uma vez a cada dois anos, mais ou menos, de que estavam juntos a primeira vez que a escutaram. E argumentará, soltando o bafo de álcool na cara dele, que clipes oficiais cujo áudio são na verdade uma gravação ao vivo mandam bem. E que clipes em que o microfone da bateria cai sobre o baterista (minuto 2'17), e ele aproveita para contar com as baquetas em cima do pedestal, e o guitarrista tenta ajudar mas só atrapalha, são ainda melhores.
3-Amy Winehouse - "Rehab" (2007)
Eu não conhecia a Amy Winehouse do primeiro disco, "Frank" (2003). Ela tocando "Rehab" em uma edição do programa inglês "Jools Holland" (todo um clássico dos 00, apesar de existir desde 1992) foi sua primeira para mim. Tudo ali chamava a atenção, da voz ao figurino, da expressão corporal à canção. Grande candidata a piada interna da festa. Afinal, ela poderá ter ingressado pela centésima vez em uma rehab no dia anterior, ou será evangélica, ou estará num reality show de celebridades decadentes, ou... bom, deixa para lá.
2-OutKast - "Hey Ya!" (2003)
Mais de vinte anos antes, Paul McCartney já tinha tido a ideia de aparecer tocando todos os instrumentos (mas como se fosse um personagem diferente em cada um) no clipe de "Coming Up". Só que a caretice cênica do ex-Beatle fica realmente pequena para a canalhice irresistível de Andre 3000 seduzindo suas groupies como o multihomem que ordena: "Now all Beyoncés and Lucy Lius/ Shake it like a Polaroid picture". Apenas ameaçada pela versão sincronizada da música com a inesquecível dança da turma do Charlie Brown que você também pode ver aqui. Lou Reed, quando ouviu "Hey Ya!" pela primeira vez, disse: "esta é a razão pela qual eu gosto do rock'n'roll".
1-White Stripes - "Seven Nation Army" (2003)
Numa manhã de maio de 2006, eu Ozama, Dudu e Fernandão, companheiros do recém-congelado Jumbo Elektro, esperávamos um trem que nos levaria de Lucca a Florença, na Itália. Na outra direção, subiram em um vagão uma meia centena de torcedores do Lucchese, um time de futebol xexelento que, em mais de cem anos, esteve por menos de dez na primeira divisão italiana. Eles rumavam a outra cidade ali perto, Viareggio, onde ocorreria naquela tarde um confronto imperdível com a equipe local. E, depois do "Viareggio, Viareggio, vaffanculo!" entoado pela rapeize, ecoou um estrondoso "ooo-o-o-o-o-oo-oooo", imitando o riff principal da guitarra que parece baixo de "Seven Nation Army".
Apenas dois meses depois, já na Espanha, acompanhei a final da Copa ao lado de um monte de italianos em um bar. Não só eles, mas a massa vermelha, verde e branca que festejava o título contra a França no estádio Olímpico de Berlim, cantavam em uníssono as sete palhetadas de Jack White. Na edição do ano seguinte do festival Sónar, aqui em Barcelona, o trio de beatboxers japoneses Afra & Incredible Beatboxband distribuíram aos jornalistas um DVD no qual mostravam sua versão vocal de "Seven Nation" a um incrédulo White nos bastidores de um festival. Enquanto isso, revistas como Rolling Stone, Q e NME a colocavam no alto de listas como "os melhores riffs de guitarra de todo o tempo".
A loucura mundial em torno deste trecho da música e as dezenas de covers que gerou já seriam quase suficiente, mas os méritos estão longe de parar por aí. Há ainda a dinâmica matadora (riff sozinho - riff com bumbo - riff com voz e bateria - refrão com guitarra distorcida - volta para o riff), a voz espetacularmente esganiçada de White, a sonoridade garageira. E completa o pacote clipe da dupla francesa Alex Courtes e Martin Fougerol, que suscitou o mais negro humor invejoso do compatriota Michel Gondry. "Tudo o que eu toco vira merda. Fiz seis clipes para o White Stripes e o único que não fiz foi hit", disse Gondry em ume entrevista.
E será justamente ao som do riff de "Seven Nation Army" que terminará seu último e perturbado sonho pré-ressaca, à chegada de Bernardo. Hora de voltar a 2021.
Reparou que na bateria do Cold Play tá escrito 'Thanks Paul'?
ResponderExcluirE o jogo da velha que pisca no meio do clipe do Strokes?
E eu, que passei um tempo afastada do mundo musical The 00's (até que chegou a Amy), pensava que tinha perdido um monte de coisa interessante e importante (já que estava imersa no mundo musical "revolucionário de esquerda unicampesino" - argh!). Mas depois deste Top10 aqui, tenho a certeza de que estou preparadíssima pra festa de 2021!
Então vamo que vamo que o som não pode parar!
Pq vc não faz um Top10 The 00's BR?
Beijos!
(Fe)