segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

O Homem que caiu sobre a Terra



Tive insônia esta noite. Como quase sempre ocorre nestes casos, a cabeça foi ocupada por sinapses musicais, uma estratégia infantilmente falível de atrair o sono. O mesmo erro de sempre. Quando me dei por desperto esta manhã, permanecia a indagação quem-dos-vivos-é-maior-que-Bowie?-caracas-talvez-só-o-Paul-McCartney, logo substituída por outra, quais-afinal-são-os-10-melhores-discos-dele-caceta-?

Passava das oito quando meu ilustre hóspede Dani Tiger acordou, para me dizer: “vaya manera de empezar la semana: ha muerto Bowie ”. Se eu já não tivesse passado um mês dividindo quarto - e, a cada três noites, cama – com ele, a aparição de sua figura descabelada metida em um pijama de tigre tamanho XL, anunciando, incrédulo, a morte da pessoa sobre a qual eu estava matutando naquele exato momento, provavelmente pensaria estar em meio a um roteiro de intrigas para Fellini filmar. Teria Bowie gasto sua derradeira noite emitindo despedidas codificadas pelo mundo afora?


Depois de um café da manhã surrealista, em que nos alternamos entre nos lamuriar sobre a perda e ser interrogados a respeito de nossas preferências de Star Wars pelo habitante de cinco anos e meio da casa, não restou mais alternativa a não ser respirar fundo, abrir o computador (que, de luto, se recusou a funcionar em uma primeira tentativa) e resolver aquela segunda indagação.

10-“Lodger” (1979)

O pulo do gato da genialidade transformadora de Bowie não foi apenas ser “oportunista no bom sentido” e, sob a desclupa de criar uma nova persona, colar nos caras certos nas horas perfeitas – de Lou Reed a Trent Reznor, passando por Luther Vandross e Robert Fripp - ou em inventar algo novo a cada disco; o truque oculto residia também em sempre antecipar a seguinte fase em sinais emitidos pela anterior.

Apesar de encerrar conceitualmente a inigualável “trilogia de Berlim”, quando trabalhou na cidade ao lado de Eno e mergulhou na obra de Kraftwerk, Neu! e outros alemães, “Lodger” foi produzido na verdade entre Montreux e Nova York. Ainda que bastante experimental e krautroqueiro nos arranjos, ia mais direto ao assunto que seus antecessores alemães. Uma ponte, portanto, para a fase mais pop que viria depois.



9-“Let’s Dance” (1983)

Aos 35 anos, tendo já feito de um tudo nessa vida e lançado a maior sequência de dez álbuns da história da música pop, Bowie achava que merecia um pouco de sucesso. Nile Rodgers era o homem ideal para cuidar de ler a criatividade de seu novo patrão e rescrevê-la em hits. E eles vieram, alegres: “Let’s Dance”, “Modern Love”, China Girl”.



8-“Aladdin Sane” (1973)


Uma fantástica continuação para “Ziggy Stardust”, mas com o estranho toque extra de um pianista de jazz, Mike Garson. Chama a atenção também o início do flerte do autor com o uso de um canto mais soul, mais de crooner mesmo, que ele exploraria sobretudo a partir de “Young Americans”, de 1975, e com força total nos últimos lançamentos.





7-“Diamond Dogs” (1974)

Sim, a etapa berlinense seria a propriamente futurista de sua carreira. Mas, ao traçar um álbum conceitual baseado em George Orwell em meio a atmosferas sinistras e guitarras sujas, Bowie encontrava uma maneira de antever seus próprios próximos passos – mesmo que, no meio do caminho, ainda houvesse um disco “negro” por conceber, “Young Americans”.



6-“Hunky Dory” (1971)

Adeus hippies espaciais, olá seres sexualmente confusos. Nascia o glam rock, que os detratores mais mal-humorados poderiam condenar como um circo vazio, restrito apenas a imagem e atitude... não fossem “Oh You Prety Things”, “Changes”, “Quicksand” e, acima de todas, “Life on Mars?” canções tão transcendentais.




5-“Heroes” (1977)

O auge da era Berlim, coroado com um hino de fazer um robô chorar (“Heroes”), mas ao mesmo tempo aberto a experimentos hipnóticos nunca vistos em terras não germânicas, como “V-2 Schneider”. Ah, e as instrumentais fantasmagóricas. Sense of Doubt”, “Neukoln”... impossível passar incólume por aquilo. 


Se algum alienígena caísse sobre a terra à época – como ocorria com o personagem vivido pelo próprio Bowie no filme que estrelara pouco antes, “The Man Who Fell From Earth” – e alguém lhe entregasse este LP, ele ficaria bastante satisfeito com a audição.



4-“Station to Station” (1976)


Esquelético como um zumbi - assumia o personagem "Thin White Duke" e cheirava o que encontrava pela frente -, Bowie quis levar o funk de “Young Americans” mais além e claro, criou outro álbum inimitável, simultaneamente dançante, elegante e tenso. Coloque “Stay” agora mesmo em todo volume e concorde.





3-“Low” (1977)

Quem se não ele para traduzir ao paradigma anglo-americano o que de melhor a alemãzada vinha tramando? Começava, três anos antes do previsto, a revolução estética do início dos anos 80. Não era pouca ambição: rompimento com a escala de blues, a preferência de sintetizadores a guitarras  - ou o uso delas como texturas - e a busca incansável por belezas melancólicas. A espetacular “Warsawa”, a mais visual de todas as composições bowieanas, era como o réquiem para tudo o que ele criara até então.

Em uma entrevista que fiz com a banda londrina Wire em 2009, o baixista Graham Lewis me disse: “'Low' e 'Heroes' são trabalhos incríveis! Eles [Bowie e Eno] estavam fazendo arte. Era a revolução. Eles, como nós, queriam mudar as coisas. Tudo não precisava ser do jeito que vinha sendo, se não gostássemos do que já existia".




2-“The Rise and Fall of Ziggy Stadust and the Spider from Mars” (1972)

O disco que sempre será sinônimo de David Bowie. Não por acaso. Clássicos como “Starman” e “Suffragette City” estão aqui. Todo o conceito do rockstar enquanto ser de outro plano, também. Dê crédito de uns 50% aos riffs de Mick Ronson, talvez a essência de toda a androginia do patrão.




1-“Scary Monsters” (1980)

Como Bowie era Bowie, é lógico que ele ia morrer atirando, soltando um álbum de grande relevância, “Blackstar”, em seu 69º aniversário, dois dias antes de embarcar rumo a sua oditty
 espacial. Mas mesmo se não tivesse produzido nada em décadas, poderíamos ficar tranquilos ao darmos o play em “Scary Monsters”, um ábum que, apesar de seus 36 anos, é tão “atual” que parece que ainda está por ser lançado.

Não tem uma ruim; não tem uma datada; e não tem uma sequer que não gere um sobressalto de surpresa, se comparada com a anterior - ou a qualquer outra coisa produzida à época (e depois). Experimente os saltos de “It’s no Game” a “Up the Hill Backwards”, de “Ashes to Ashes” a “Fashon” ou de “Teenage Wildlife” a “Scream Like a Baby”. Tudo maravilhosamente estranho, mas irresistivelmente acessível. Depois disso, só mesmo baixando a guarda do experimentalismo, pintando o cabelo de loiro e virando popstar com “Let’s Dance”.