terça-feira, 27 de outubro de 2009

Finados: eles não descansam em paz





Quando astros da música morrem, alguém sempre diz: "este não incomoda mais". E a frase não sai da boca apenas de quem não suportava os músicos recém-falecidos. Ela é proferida também, em coro, por aproveitadores que, ainda no velório, já estão tramando como lucrarão às custas do óbito daquele ídolo pop. "Merda vende, morte vende mais", resumia muito bem o trio Kleiderman (dos Titãs Branco Mello e Sérgio Britto) na canção "Get me Higher". É uma das leis do business sônico, não tem jeito, basta notar a rapidez com que se preparou "This is It", tal do filme com os ensaios da que seria a última turnê de Michael Jackson.

E, aproveitando que se aproxima o Dia de Finados (2 de novembro), o Mala da Lista exuma a cova de uma das espécies mais oportunistas de rentabilidade sobre cantores e bandas: os duetos ou outras colaborações póstumas. Criada graças à evolução das tecnologias de gravação nos anos 1990, esta foi a primeira modalidade de mash-up antes mesmo que o termo fosse inventado.

Já por princípio trata-se de um procedimento bastante discutível, por partir da decisão unilateral de alguém - um produtor, uma gravadora ou um músico mesmo - sem que o morto "homenageado" seja consultado. Haha, você dirá que é claro que isso não seria possível. Mas então por que, por via das dúvidas, não deixar tudo como está, para não correr o risco de ver um velho herói revirando no caixão? E ainda por cima, muitas destas "parcerias" não acrescentam em nada musicalmente e perdem para as versões originais, quando elas existem.

Sim, eu sei também que alguns destes encontros pós-mortem foram bem intencionados e resultaram em algo interessante. Mas, como na maioria dos casos predominaram a ganância e a picaretagem, este Top 10 começará pelos reencontros "místicos" que soaram melhor, passará pelos que apenas escapam e chegará aos piores e mais oportunistas. Não valem remixes, como o de Junkie XL para "Little Less Conversation", de Elvis Presley. E se os finados em questão não concordarem, que caia um raio sobre minha cabeça agora.




10- John Lennon + Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr -"Free as a Bird" (1995)

Praticamente tudo que envolve os Beatles opera a pelo menos um degrau acima do resto das bandas. Inclusive em se tratando da malfadada prática das gravações póstumas. A diferença em "Free as a Bird" é que sua proposta era a mais ambiciosa desta lista: os três então remanescentes do quarteto terminariam uma canção iniciada por Lennon, cuja fita demo caseira Yoko liberou de seus arquivos. Em seguida, mantendo os vocais originais do falecido beatle na parte 1 (a única que até então existia), a arranjariam e a gravariam.

Deu no que deu. Ou seja, uma canção à altura das melhores do grupo e também um dos raros exemplos de composição dos Fab 4 em que se observa nitidamente a junção de passagens criadas por John e Paul, como ocorrera em "We Can Work ot Put" ou "A Day in the Life". Desde logo que a ausência de Lennon ajudou o trabalho de seu desafeto fluir. E os genes melódicos de McCartney não decepcionaram nos trechos "What ever happened to?/ Life that we once knew". No segundo deles, aliás, o vocal de George Harrison leva às lágrimas o mais cético dos ouvintes de experiências discográficas póstumas. Incluindo este Mala aqui.




9- Marvin Gaye + Nona Gaye - "The Star-Spangled Banner" (2004)

Sim, Marvin Gaye tem uma filha que canta, este mulherão chamado Nona, que acabou virando atriz. Uma manobra inteligente, já que seu talento para música ficaria sempre à sombra e a anos-luz de distância do impacto do pai. Nesta solenidade esportiva de 2004, ela é o primeiro plano de mais um espetáculo "pai e filha unidos pela tecnologia" (ver item 2). Mas, ainda que Nona seja areia demais para qualquer de nossos caminhõezinhos, o que não dá mesmo é para tirar os olhos de Marvin no telão. Em outro megaevento do gênero, de 1983, ele rearranja o hino nacional americano de forma que a canção pareça de sua autoria, com direito a electro-batidinhas malandras no estilo de seu disco "Midnight Love", lançado no ano anterior.





8- Ray Charles + Count Basie Orchestra - "Ray Sings Basie Swings" (2006)

É caça-níqueis, mas um caça-níqueis de alta classe. Aproveitando que a morte de Ray Charles ainda era um assunto quente - ele fora desta para uma melhor em 2004 e no mesmo ano saíra o filme "Ray" -, um executivo da Concord Records não hesitou ao encontrar fita com gravações de um show do soulman de 1973. No registro, mal se escutava a parte instrumental, mas a voz de Charles se sobressaía intacta. E como na mesma noite a Count Basie Orchestra havia tocado, o mesmo produtor resolveu juntar lé com cré na forma de um disco. Convocou a big band, então há mais de vinte anos órfã de seu líder, para reinterpretar os arranjos daquela noite de 33 anos antes. Músicos de primeiríssimo gabarito, um dos maiores intérpretes de todos os tempos, um repertório de clássicos. Maquiavélico.





7- Cazuza + Barão Vermelho - "Codinome Beija-flor" (2005)

Uns diriam que foi uma oportunidade de registrar em disco um velho sucesso de Cazuza que ele não gravara originalmente com sua ex-banda. Outros, que é mais uma picaretagem nostálgica travestida de especial da MTV. Eu acho que é meio a meio, e não porque fico em cima do muro, mas porque os dois lados são claros para mim. Mas tudo bem, vai, passa. E mesmo que venha de um CD player, a voz de Cazuza encontrando com a de Frejat soa mais inspiradora do que, por exemplo, o dueto que ele faz com a Simone da mesma canção. Porque Simone, ao contrário do que pensam os gringos, não dá.





6-Bob Marley + Lauryn Hill - "Turn Your Lights Down Low" (1999)

A hoje reclusa Lauryn Hill era a bola da vez há dez anos, quando desfrutava do merecido sucesso por seu disco "The Miseducation of Lauryn Hill", de 1998. E também era a garota dos olhos de Rohan Marley, um dos filhos de Bob. Uma coisa levou a outra e, quando ela menos esperava, já estava gravando um dueto póstumo com o finado sogro. O resultado é uma canção pop razoável, muito mais para o hip-hop temperado com R&B de Hill do que para o reggae de Marley. A picaretagem fica a cargo do uso da voz do ícone jamaicano, que acabou sendo praticamente um sample, e não uma "participação" propriamente dita.





5- Elis Regina + Milton Nascimento - "Golden Slumbers/Carry that Weight" (2009)

Dois anos após o lançamento de "Abbey Road" (1969), Elis Regina gravou uma versão deste trecho do grande medley que encerra o disco e que acabaria servindo de mensagem de despedida dos Beatles. O registro ficaria guardado numa gaveta de estúdio até que, só neste ano, fosse resgatado pelo produtor Marcelo Fróes para a coletânea "Beatles 69", com artistas brasileiros homenageando a transcendental bolacha. E, mais do que desenterrá-la, ocorreu a Fróes chamar Milton Nascimento para um back to back artificial com Elis.

Estávamos diante, portanto, de duas minicanções de Paul McCartney presentes em um dos melhores trabalhos da melhor banda de todos os tempos, interpretadas pela maior cantora brasileira e prestes a ganhar complemento vocal de outro gigante, além de ex-parceiro e beatlemaníaco convicto. Tudo pronto para a geração de um legítimo clássico que só a máquina do tempo conhecida como Pro-Tools pode proporcionar, correto?

Bem... mais ou menos. Percebe-se, logo de cara, o porquê da primeira versão de Elis nunca ter dado as caras. Ficou muito aquém do que se espera dela. E a voz de Milton, meio que perseguindo a da amiga ao invés de criar alguma harmonia notável (e entregando-se, assim, como póstuma), perde-se sobre o novo arranjo. Que, diga-se de passagem, é caidaço. Apesar de toda a emoção relatada pelos presentes no estúdio, este "Golden Slumbers/Carry that Weight" não convence nem o mais ingênuo fã de Beatles ou os mais radicais admiradores de Elis e Milton.






4-Lisa 'Lef Eye Lopes' + TLC e Missy Elliott - "Let's Just Do It" (2009)

As colaborações no hip-hop viraram um negócio tão mercenário que para Missy Elliott, por exemplo, daria na mesma se ela estivesse botando suas rimas no disco de uma pessoa viva. E "Let's Just Do It" é apenas uma das faixas de "Eye Legacy", o recém-editado álbum póstumo de Lisa "Left Eye" Lopes, integrante do grupo de R&B TLC morta em um acidente de carro em 2002.





3-Renato Russo + RPM - "A Cruz e a Espada" (2002)

Para ajudar na promoção de seu revival pela MTV, o RPM forçou a barra buscando a voz de Renato Russo cantando "A Cruz e a Espada", hit da banda lançado nos anos 1980. Como que dizendo, "estão vendo? O cara gravou a nossa música antes de morrer!". Para completar, o trecho foi extraído de "Rock Popular Brasileiro", disco de versões de Paulo Ricardo lançado em 1996. Ou seja, era ele fazendo cover da própria banda.





2-Nat King Cole + Natalie Cole - "Unforgettable" (1991)

Esta não poderia ficar de fora de jeito nenhum. Afinal, foi a gravação pioneira das parcerias somente possíveis com a ajuda da máquina. Ou no mínimo a precursora nas possibilidades de execução simultânea, ao vivo, de uma voz real e outra do além. E também a mais bem-sucedida - o disco "Unforgettable: With Love" vendeu milhões de cópias e abocanhou Grammys. Ao menos o arranjo original foi preservado. Depois desta, nenhum músico morto jamais descansou totalmente em paz.





1-Tupac Shakur + Notorious B.I.G. - Runnin' (Dying to Live)" (2003)

Tupac Shakur foi assassinado a tiros em setembro de 1996, pouco menos de seis meses antes de seu rival Notorious B.I.G. também morrer baleado. Os casos nunca foram resolvidos, mas não faltam indícios para alimentar as teorias da conspiração de que a turma de um esteja envolvida na morte do outro. É inegavelmente uma das lendas urbanas mais interessantes da história da música pop. E ao mesmo tempo a prova cabal da imbecilidade do pensamento gangsta rapper, tão injustificável quanto a violência homicida entre torcidas de futebol.

A fusão de versos de Tupac e B.I.G. presente na trilha sonora do documentário "Tupac: Ressurrection", vai para o trono das presepadas listadas aqui não só por partir de dois mortos. Leva a medalha de ouro principalmente por ser uma fusão forçada, nonsense, bancada por quem só pensa em tirar mais um troco do resultado e que não está nem aí para os assassinatos entre rappers (que volta e meia ainda acontecem). O mash-up da hipocrisia.


quarta-feira, 21 de outubro de 2009

2000-2009: The iPod Years (Parte 2)


5-TV On The Radio - "Return to Cookie Mountain" (2006)




Se juntássemos a quantidade de lixo produzido em nome da sagrada herança musical negra nestes últimos dez anos, teríamos material para uma playlist eterna. Com a transformação de algumas vertentes do hip-hop em máquina de dinheiro em meados da década passada, o oportunismo e o mau gosto disseminaram pelas rádios e MTV um farto catálogo de pragas: canastrões de canto choroso, gostosas sem talento, rappers que contam vantagem cuspindo idéias neolíticas sobre a vida em geral, e odiosos duetos entre estes dois últimos exemplares da fauna.
Aí é que entra o TV On The Radio. Em uma visão rasa e racista, alguém poderia dizer que a banda novaiorquina é interessante por trazer músicos negros que não necessariamente apostam por R&B, ou gangsta rap, ou alguma dessas estéticas tão desgastadas normalmente associadas aos músicos afroamericanos contemporâneos.
Mas é óbvio que vai muito além disso. O TOTR impressiona porque criou em seus três álbuns ("Cookie Mountain" é o segundo) um mundo particular. E tal concepção rolou justamente porque seus integrantes souberam absorver e dar novos significados às pepitas desta mina de ouro que é a tradição musical dos EUA. E não lapidaram apenas as pepitas negras, por supuesto.
Este carismático planeta mostra sua geografia inconfundível em apenas 20 segundos de "I Was a Lover", a primeira faixa de "Return to Cookie Mountain". Estão, nestes poucos compassos, todas as marcas do grupo. Batidas quebradas desdobradas confrontadas a paredes vocais inspiradas pelo doo wop dos anos 50. Dando a liga, colchas de guitarra shoegaze coreografam com estranhos samples e teclados de ecos experimentais.
E, enquanto tentamos captar todas as nuances das vozes - atenção para os falsetes deslumbrantes do guitarrista Kip Malone -, nos convertemos em habitantes felizes de um território que ainda tem muito a ser explorado.
*Uma música: "A Method"


4-Beth Gibbons & Rustin' Man - "Out of Season"




É uma constatação cruel saber que o mundo fica mais belo quando Beth Gibbons está triste. Mas trata-se da mais pura verdade, e a gente já sabia disso desde "Dummy" o primeiro disco que a banda dela, o Portishead, lançou lá em 1994. Quando você a vê ao vivo num palco - os olhos fechados, o cenho franzido em desconsolo, a coluna arqueada em ângulo côncavo -, a vontade que dá é de levá-la para casa e envolvê-la num cobertor.
E, se Gibbons já nadava num mar de solidão quando cercada das cortinas de samplers e texturas do Portishead, imagine a distinta donzela inglesa quando despida de toda aquela áurea de mistério, e vista de muito perto. O que acontece, então, é a exposição das feridas de alguém que sofre, sofre e sofre, mas aguenta o tranco até o fim porque sabe que transformará a dor em arte. Pois, como geme Gibbons em "Sand River", "beauty's got a hold on me".
E, para que canções tão lindas e sentidas ganhassem um entorno à sua altura, o ex-Talk Talk Rustin' Man foi o maestro soberano. Costurou uma delicada teia de violões, órgãos, baixo acústico, cordas, metais, acordeom e outros tecidos típicos do folk renovado para converter os lamentos-canção da colega, se é que isso era possível, em épicos do intimismo.
Na imersão dos climas e versos, Gibbons ainda demonstra o porquê de ser uma das cantoras mais especiais dos últimos anos, remetendo tanto a Nick Drake quanto a Billie Holiday, entre outras lendas do sofrimento cantado. Mas não vá se desesperar por tanto desamparo. Siga os conselhos da própria Beth na maravilhosa "Tom The Model":
"You know you don't ever have to worry 'bout me/

I'd do it again".

*Uma música: "Sand River"


3-Radiohead - "In Rainbows" (2007)



Antes que a TORA (Torcida Organizada Radiohead te Amo) manifeste seu repúdio à ausência de "Kid A" nesta lista, é importante relatar alguns bastidores. Seguindo o regulamento do Mala da Lista de acordo com o qual uma banda só poderia ter um álbum no Top 10 da década, a idolatrada bolacha de 2000 jogou uma empenhada prorrogação com "In Rainbows". O empate persistiu, o que acabou levando a decisão às penalidades máximas. E aí na hora H, não teve jeito, apesar do talento dos batedores de "Kid A": Thom Yorke (tirombaço no ângulo), Jonny Greenwood (com efeito e paradinha), Ed O'Brien (toque seco no canto), Colin Greenwood (toque seco no meio) e Phil Selway (no contrapé do arqueiro).
"In Rainbows" venceu a eliminatória porque, antes de mais nada, ele É um pouco "Kid A". E É um pouco de "The Bends", "OK Computer", "Amnesiac".... suas dez faixas atestam que Yorke e equipe perceberam que não precisavam mais dedicar tanto tempo revirando do avesso as estruturas da Canção, ou descobrindo timbres tão ousados, ou criando atmosferas de tal estranheza para chegar "lá". A banda pop mais importante da década concluiu que, com seu arsenal composto por uma voz imortal, acordes e melodias insuperáveis e uma infinidade de ideias para arranjos originais, tudo poderia ser mais simples e natural.
Se "Kid A" era uma viagem sem volta a lugares jamais antes visitados - o álbum soa exatamente como uma regata, em barco também de gelo, às paisagens polares de sua capa-, "In Rainbows" é a assimilação desta trip na forma de melhores e mais objetivas canções. Que, para conforto da TORA, vêm embaladas em impenetráveis películas do experimentalismo acumulado em seis outros trabalhos de estúdio.
E que contam com algumas das melhores interpretações vocais da vida de Yorke. Vide "All I Need", "Videotape" e, sobretudo, "Nude", em que ele encarna uma espécie de Smokey Robinson pálido e tristonho anunciando a era glacial que se aproxima.
Nada, portanto, como a maturidade de quem sabe o que significa ter que continuar lançando álbuns, e que está ciente da expectativa que paira sobre eles. Mesmo após já ter dado ao mundo um "OK Computer" ou um "Kid A". Que venha o próximo.
*Uma música: "House of Cards"


2-Strokes - "Is This It" (2001)




De certa forma, "Is This It" é o "Nevermind" dos 00. Mais do que coincidência, o fato dos dois álbuns terem sido lançados nos primeiros anos de suas respectivas décadas foi sintomático. A ruptura proporcionada pelo trio de Kurt Cobain foi mais necessária, porque no final dos anos 1980 a situação do rock no mainstream era realmente crítica (Poison e Skid Row dominavam as paradas). Mas no crepúsculo dos 1990, com boybands e britneys dando as cartas e a eletrônica como um das únicas válvulas de escape de renovação, o rock também precisava de uma injeção de energia.


E "Is This It" foi bem mais do que uma dose cavalar desta energia. O disco acabou sendo o beabá de como este tal de rock seria resgatado pela milhonésima vez. Agora (ou melhor, lá em 2001), segundo a cartilha de Julian Casablancas e aqueles outros quatro guaperas, se daria bem quem pesquisasse o que aconteceu em Nova York entre 1967 e 1979. Em termos de música, visual e o estilo "sou novaiorquino, mando bem e não estou nem aí".
De Velvet Underground a Blondie, dos Ramones ao Television, não houve proto-punker que não comparecesse, ainda que na forma de uma leve citação, no coquetel estroqueano. Com a diferença - e uma importante diferença - que nenhuma destas vacas sagradas, com exceção dos Ramones, reuniu jamais gemas pop roqueiras tão irresistíveis em um mesmo álbum. Tanto foi assim que "Is This It" virou o disco de rock a ser batido na década... e pelo menos até o quinto bimestre de 2009 ainda não foi superado.
Como efeito colateral, da mesma forma que o Nirvana gerou o Silverchair e o Creed, e o grunge se desgastou relativamente rápido, o "novo rock" dos Strokes tem sua parcela de culpa indireta. Pela inspiração que infringiu às bandas emo e a toda esta classe de bundões sem imaginação que fizeram com que, no final da década, já estejamos de saco cheio desta estética pós-punk recuperada. O que era vanguarda virou um modelo cansativo: todas as batidas têm que ter a "urgência" disco-rock, os vocais são obrigatoriamente chorosos, os teclados precisam porque precisam emitir melodias melancólicas e grandiloquentes, e as letras que não forem meio engraçadinhas, irônicas, são descartadas.
2011 se aproxima e alguém precisa passar o rodo nesses aproveitadores e servir às massas alguma outra espécie de "novo rock". A missão dos Strokes já está mais do que cumprida.
*Uma música: "Modern Age"




1-OutKast -"Speakerboxxx/The Love Below" (2003)




Pesquisando uma resenha que escrevi na ocasião do lançamento deste álbum duplo, publicada em dezembro de 2003 pelo site da MTV (não passo o link porque não está mais lá), achei a frase: "é sério candidato a disco do ano e desde já corresponde a um marco na black music". Lembro de, naquele momento, refletir sobre a possibilidade de estar, na verdade, diante da obra-prima da década. Mas dei de ombros a meus próprios pensamentos, numa bipolaridade cética, ainda que cautelosa. Afinal, estávamos apenas no quarto anos dos 00.
Seis outros se passaram e agora eu posso anunciar que "Speakerboxxx/The Love Below" é (são), sim, o(s) disco(s) da década.
A começar pela ousadia do projeto, em realidade a soma de "Speakerboxxx", um álbum produzido e protagonizado por uma metade da dupla, Big Boi, e "The Love Below", comandado por seu companheiro Andre 3000. Por isso os parênteses do paráfrago anterior, indicando os plurais. Até a capa é dividida. Em cada um dos CDs, o "outro" era apenas um convidado e não metia muito o bedelho. Nem os Beatles se atreveram a fazer isso. E olha que com eles isso seria possível, já que quase sempre eram nítidas quais eram as músicas de Paul e quais as de John.
A iniciativa não só foi um êxito musicalmente, mas acumulou recordes comerciais e prêmios pomposos: papou o Grammy de Álbum do Ano do ano e é o título de hip-hop mais vendido da história dos EUA, com 11 milhões de cópias vendidas (ou 5,5 milhões + 5,5 milhões, é assim que se contabilizam as bolachas duplas). Claro que aqui ninguém se preocupa com o Grammy, mas é curioso quando seus ganhadores são também um exemplar discográfico de excelência.
No caso do petardo duplo do OutKast, o principal indício desta excelência, sem dúvida, foi a pretensão bem-sucedida de derrubar barreiras entre o que se espera dos rappers e a quantidade de estilos pelos quais os mais talentosos deles podem transitar. Caso se aventurem, é lógico. Neste sentido, sob o filtro da lente pop, o trabalho está muito mais para TV On The Radio do que para Snoop Dogg.
Pelas contas do Mala da Lista, das 29 músicas propriamente ditas (excluindo as 11 vinhetas) espalhadas pelas duas horas e quinze minutos de "Speakerboxxx/The Love Below", 22 são essenciais, além de perfeitamente aptas a hit. Uma matemática insana que, novamente, pode não ter sido obtida nem pelo "White Album".
E o fenômeno "Hey Ya!", o megasucesso que até o Roupa Nova regravou, surpreendeu a tal ponto a própria gravadora que praticamente não ouve tempo para promover outras "músicas de trabalho". Uma delas, "Roses", por exemplo, é uma das melhores canções pop não só desta, mas de todas as décadas. E acabou passando relativamente despercebida pelo grande público.
"Speakerboxxx", o primeiro disco, não tira o pé do acelerador até sua metade. Ainda que tenha se mantido um pouco mais atado à tradição dos discos hip-hop moderno - os interlúdios, as várias participações de peso (de Jay-Z a Cee-Lo), as complicadas rimas -, Big Boi foi revolucionário. Flertou com miami bass ("Ghetto Music"), funkeiras ao estilo P-Funk ("Bowtie"), a canalhice em hibernação do Earth Wind & Fire ("The Way You Move") e vanguardistas bases ("War"). Na segunda parte, segue uma pegada não tão inovadora, mas com elementos interessantes distribuídos por todas as faixas restantes.
Quando chegamos em "The Love Below", o segundo disco, o buraco é bem mais embaixo. E para mim o impacto ainda foi maior, porque acabei escutando-o antes de "Speakerboxxx". Não intencionalmente, o que ocorreu foi que a prensagem enviada pela Sony-BMG aos jornalistas estava com os nomes trocados. A gravadora fez uma espécie de recall de fábrica, mas no Mala da Lista o dano já estava causado.
Sozinha, a parcela que cabe a Andre 3000 neste latifúndio provavelmente já garantiria o caneco da década para a dupla. Uma gorda nuvem de inspiração sobrevoou o sujeito durante a produção das canções, que em seu caso foi bem mais individualista, sem quase espaço para participações.
Sim, eu ia dizendo canções. Pois Dre deixou o elemento rima quase totalmente de lado, utilizando-o em posologia discreta - como se seus raps fossem um solo de guitarra ou sax -, e resolveu cantar. E, se como solista sua voz despontou como um jovem e ainda mais escrachado Sly Stone, nos coros elas são de uma esperteza que não se ouvia desde os melhores momentos do Funkadelic.
Um leque de possibilidades que se multiplicou com a opção de 3000 em usar, em sua visionária irresponsabilidade, jazz ("Love Hater"), funk ("Behold a Lady") e psicodelia ("She's Alive"), entre outros sabores, para dar corpo a suas ideias. O arranjo de cordas ao final de "Pink and Blue" é emocionante, enquanto o doce dueto com Norah Jones em "Take Off Your Cool" dá a mensagem da década: "baby, take off your cool / I wanna see you".

Some-se a isso a capacidade de 3000 de extrair algo legitimamente novo a partir de múltiplas influências e seu hábito de pensar musicalmente com a cabeça de baixo (até no nome do disco), e entendemos porque ele foi comparado a Prince. Um paralelo adequado, eu diria, mas com o adendo de que 3000 tem mais senso de humor e menos ambiguidade sexual que baixinho. De uma forma ou de outra, o cara é um gênio dos 00 do qual nos lembraremos.

*Uma música: "Roses"

terça-feira, 20 de outubro de 2009

2000-2009: The iPod Years




Nas enciclopédias de um futuro mais ou menos próximo, uma frase como esta acima definirá nossa década. Olhando para trás com algum distanciamento cronológico, poderemos por fim observar claramente o tamanho da revolução que aqueles velhos anos 00 representaram na maneira de se apreciar música, tecnologicamente falando.



Também será possível notar como a mudança descomunal - possivelmente a mais radical desde a própria invenção do disco - foi o ippon na Indústria Fonográfica como a conhecíamos e democratizou como nunca o acesso à informação musical.



O que é uma faca de dois gumes, aliás. Lembra daquele Zé Mané da adolescência que sentava do seu lado na escola e não dava a menor pelota para os discos importados pelos quais você dava a alma na Galeria do Rock? Agora ele possui, em seu hard disk de um tera, todos na versão original, além das edições remasterizadas com bônus tracks e os cortes em mono que só saíram do Japão. Mas ele nem sabe que tem nada disso, e se souber nunca vai escutar. Afinal, sob certos aspectos as coisas não mudam tanto assim, e ele ainda faz questão de ser o mesmo Zé Mané de 1993.



Mas o que não se altera também, ainda bem, é a capacidade dos artistas de reinventarem a música. Ranzinzas que me perdoem, mas independentemente de como chegaram aos tímpanos das pessoas - se em MP3, MP4 ou alguma outra sigla -, os discos bons surgiram aos montes entre 2000 e 2009. Por isso, e porque não é todo dia que uma década acaba, o Mala da Lista, que havia dito que tentaria fugir das listas-clichê, abre aqui uma exceção para selecionar os álbuns internacionais de que mais gostou entre os lançados no período. Neste primeiro post, do número 10 ao 6.



Não foi nada angustiante tirar as dúvidas que ainda pairavam sobre os dez-mais definitivos. A todos os finalistas ordenei "já para o iPod" (sempre ele...), e a partir de então sucederam-se audições consecutivas em caminhadas, corridas, pedaladas ou cambaleadas em ziguezague pelas ruas de Barcelona. Azarões atropelaram por fora na última hora e favoritos perderam fôlego no sprint final, como em toda disputa emocionante.



Basicamente, estes integrantes do Top 10 2000-2009 são:



-discos que criaram um universo inédito, uma estética totalmente ou quase totalmente original, e que já influenciaram muita gente.



ou...



-discos que são gloriosas atualizações de tradições sólidas na galáxia pop. Podem não ser os mais inovadores da paróquia, mas igualmente me inspiraram e influenciaram.



A primeira categoria pesou a favor como critério de desempate, por exemplo, na decisão entre o primeiro e o segundo colocados. Outra regrinha foi descartar a repetição de artistas: dois títulos que fossem do mesmo autor e estivessem aptos à lista final tiveram que se digladiar numa espécie de eliminatória mata-mata, com prorrogação e decisão de pênaltis.



Em comum, os dez álbuns podem dizer que foram e ainda são habitués de meu CD player ou iPod. E que se candidatam seriamente a sobreviverem à passagem do tempo, nos moldes da teoria do escritor japonês Haruki Murakami no precioso livro "Tokyo Blues". Segundo ele - se referindo aos livros, e eu adapto aqui para os álbuns - só se analisa a excelência de uma obra trinta anos após a morte de seu autor. Em 2039 a gente se fala, então.






MEUS DISCOS DA DÉCADA - DO 10º ao :



10-Amy Winehouse - "Back to Black" (2007)




A esta altura, você já deve sentir náuseas à simples menção do nome da cantora inglesa. Eu mesmo estou controlando a golfada e respirando fundo. Mas o que devemos tentar evitar, como certamente não faz o Zé Mané do segundo parágrafo, é julgar um artista pop por sua incidência nos tablóides. Fosse assim, Michael Jackson seria o mais desprezível dos cantores em todos os tempos.

Antes que sucumbisse à superexposição e ao estilo Geraldão de ser, Amy Winehouse gravou uma belíssima coleção de canções que nos transportou para algo próximo dos golden years da Motown e dos singles de Phil Spector. E não só porque "Tears Dry on Their Own" é filha de "Ain't no Mountain High Enough" (Amy até deu crédito ao casal Ashford & Simpson, autor do hit de Marvin Gaye), mas também porque a adorável magrela desdentada recuperou um pouco da equação que encantou o mundo nos anos 1960: música negra de qualidade + malícia + produtores e músicos espertos = magia pop.

E ainda que a produção de Mark Ronson e os arranjos vintage da banda acompanhante, Dap-Kings, sejam de um bom gosto e um suíngue irretocáveis, o mérito principal é de Amy. Sua voz sacana e segura e a pegada vira-lata de suas letras - nos EUA a bolacha ganhou o famoso selo "Explicit Lyrics" - e seu carisma de mulher de malandro foram irresistíveis. Vale lembrar que os mesmos Dap-Kings foram os sidemen de outra bela bolacha, "100 Days, 100 Nights", de Sharon Jones, uma cantora ainda mais potente que Winehouse, mas sem o "mojo" necessário para vender mais de 12 milhões de cópias.

*Uma música: "Rehab"




9-Paul Weller - "22 Dreams" (2008)




Em seu cinquentésimo aniversário, o ex-vocalista do Jam e do Style Council nos deu de presente um disco que não falha da primeira à vigésima-primeira faixa (os sonhos são 22, mas as canções não passam de 21).



E é nada menos que comovente escutar, embasbacando-se, como o cara destila o que aprendeu em três décadas. Com raiva e amor, rhythm and blues enérgicos se entrelaçam a baladas de cortar o coração, enquanto peças instrumentais abrem caminho para doces melodias pop. Não tem erro.



Tocadas por gente que endeusa Weller, como Noel Gallagher e Graham Coxon, as guitarras de "22 Dreams" encheriam Neil Young de orgulho. Elas servem de tapete para sua voz em estado de graça, pela qual vibram graves de arrepiar a espinha. Um disco para tampar, com bola de bilhar e silver tape, a boca dos que vivem enterrando o rock.

*Uma música: "Have You Made Up Your Mind"


8-El Guincho - "Alegranza" (2007)





Na década em que o sample virou carne de vaca, dá preguiça pesquisar, mas ainda é possível topar com quem encontre novos atalhos para o ofício de recortar e recontextualizar. No caso de El Guincho, nome de guerra de Pablo Díaz-Reixa (integrante da espetacular banda Coconot, da qual ainda falarei), trata-se de seu próprio e inimitável caminho das pedras.



Nascido nas Ilhas Canarias, o arquipélago espanhol que fica mais próximo à África do que da Europa, ele soube centrifugar o heterogenismo de suas referências sonoras com um talento e uma identidade assustadores. Batucadas à caribenha e à canária, faro pop à anglo-saxã, hipnose e texturas à alemã, escalas e melodias a vai-saber-que-lugar-do-mundo. Cabe tudo dentro da máquina de lavar de El Guincho, e o nome da massaroca que ele estende no varal ainda está por ser inventado.



Conceitualmente, lembra vagamente o que Brian Eno e David Byrne criaram em 1981 com " My Life in the Bush of Ghosts". Mas pára por aí, já que, na prática, só se parece mesmo com uma coisa: El Guincho.



*Uma música: "Palmitos Park"



7-Queens of the Stone Age - "Songs for the Deaf" (2002)



Quem disse que o rock pesado também não pode se renovar? Certamente, não foram Josh Homme ou Nick Olivieri, os cabeças do Queens Of The Stone Age quando este monolito intransponível foi parido. Sem querer, "Songs for the Deaf" foi uma rara e interessante referência da década de 00 ao datado grunge. Veteranos "noventeiros" de fato (tocaram no extinto Kyuss), Olivieri buscavam o equilíbrio entre o peso, a sujeira e o pop com afinco semelhante ao da rapeize da Seattle de dez anos antes.

Mas a sua versão da mesma receita saiu do forno bem mais crocante e saborosa, com um espantoso frescor. Uma parafernália pesada, máscula, movida por uma potência nuclear apenas equiparada pelo clássico-mor daqueles dias, "Nevermind". Somente a testosterona despendida pelo riff de guitarra da primeira faixa, "You think I Ain't Worth a Dollar, But I Feel Like A Millionaire" já basta para que o ouvinte assimile o tapa na cara e entre no clima.

E por falar em Nirvana, David Grohl foi um dos heróis grunge angariados para a superbanda em que se converteu o Queens Of The Stone Age durante a confecção de "Songs For The Death" e a turnê que sucedeu seu lançamento. Após anos empunhando voz e guitarra no Foo Fighters, ele coçava as mãos para voltar a tocar bateria numa banda. E, uma vez solto no estúdio, o sujeito só faltou fazer chover: desde Keith Moon não se via um baterista pegar tão de jeito e ao mesmo tempo se divertir horrores num disco de rock.

O outro safra 92 convidado foi o ex-Screamming Trees Mark Lanegan, gogó rouco mais estiloso da atualidade, cujo canto cavernoso grudou nos falsetes de Homme como uma pitoresca e sedutora cola. Para ouvir alto. Muito alto.

*Uma música: "A Song For The Deaf"


6-Sonic Youth - "Sonic Nurse" (2004)



CV Sonic Youth: Quase trinta anos juntos. A mesma formação há 25. Um casal rumo à boda de diamantes, o verdadeiro matrimônio sagrado do indie rock. Uma média de um álbum a cada dois anos e pouquinho que não se altera. Todos eles bons. Ou excelentes.
Enquanto viam a nova onda roqueira 2000 nascer e explodir em sua vizinhança nova-iorquina, Thurston Moore, Kim Gordon, Lee Ranaldo, Steve Shelley e mais o colaborador de luxo Jim O'Rourke (que durou só dois álbuns) apenas seguiram normalmente sua rotina, lançando belos trabalhos de estúdio. "Sonic Nurse" foi o mais certeiro dos quatro editados na década, e em suas entrelinhas lia-se: "vocês são jovens e legais, mas nós somos os caras que vocês imitam, lembram-se?".

O álbum é uma mistura exata dos dois critérios la de cima, já que não traz nenhuma novidade estilística com relação a LPs anteriores da banda, mas mantém justamente a tradição do som inventado pela própria. E que segue sendo copiada aos borbotões. Melodias de primeira, bateria precisa e explosiva, os gritos e sussurros de Gordon (ela cantando "I Love You Golden Blue" para Moore é inesquecível) as dinâmicas de fazer o chão tremer... puro SY no que eles têm de melhor.

*Uma música: "Stones"